sábado, 5 de novembro de 2011


Não saberia dizer há quanto tempo o silêncio. De repente, ergueu a cabeça do livro, estranhando o silêncio gritante num autocarro cheio de gente. Gente fala de tudo e constantemente, num chorrilho de sabedorias sem fim.
A mulher a seu lado não tem nome nem rosto. É uma mulher num assento de autocarro. Não sabe que essa mulher tem uma cereja no lugar da voz. Cereja cresce e vira maçã, grande e opressiva, e então a mulher solta um soluço que soa como uma imprecação no autocarro calado. Ela é raiva de si mesma porque não susteve as lágrimas e essa atrapalhação que sente, como quem cometesse uma indiscrição, é um pedido de desculpa. Também para a pessoa a seu lado, que não consegue fixar uns olhos lacrimosos e a espreita, constrangida com tamanha mostra de impudor. E talvez o mesmo olhar piedoso com que se olha um louco na rua.
Mas ela não é louca, não ainda, não dessa loucura que é um decreto dos outros. E, por isso, maior a estranheza dos que a tomam como igual. Os loucos são olhados com piedade e benevolência, são loucos que não ofendem, porque são loucos. Ela está no outro círculo e prevaricou. Foi um descuido. De ora em diante, terá o cuidado de ser louca numa caixa sem janelas, para que ninguém veja e se ofenda. E da próxima vez, fará da cereja um sorriso, numa hipocrisia que é o pão nosso de cada dia.

6 comentários:

  1. Se seu texto fosse só...
    "Ela está no outro círculo e prevaricou. Foi um descuido. De ora em diante, terá o cuidado de ser louca numa caixa sem janelas, para que ninguém veja e se ofenda. E da próxima vez, fará da cereja um sorriso, numa hipocrisia que é o pão nosso de cada dia." já teria cumprido seu papel de nos mostrar seu talento

    Cada vez melhor, Elizabete.

    Bom domingo. Beijos.

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  2. grande o tempo do silêncio

    a loucura é o caroço numa cereja o doce numa maçã

    sem ele, os autocarros nunca desenhariam escritas

    muito bonito, EA!

    um abraço

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  3. Uau!

    Deixo-te a música de que te falei:"Anda comigo ver os aviões" dos grandes Azeitonas - http://www.youtube.com/watch?v=L8aYZGpTabQ&feature=feedf

    Espero que gostes.

    Beijinhos,

    Sónia

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  4. Do que, por vez, extravasa. O conteúdo, o contido. Ser em jorros. Hemorragia da alma. Soro do sal que há em si. O porquê da lágrima e de sua descor: o invisível que nos transparece.

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  5. gostei particularmente deste texto. expressas-te muitíssimo bem. Parabéns pelo bom trabalho.

    http://www.the-hf-blog.blogspot.com/

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  6. Cativa a imaginação e faz-me supor tantas "loucuras".
    Um bjinho
    Isabel

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