Não saberia dizer há quanto tempo o silêncio. De repente, ergueu a cabeça do livro, estranhando o silêncio gritante num autocarro cheio de gente. Gente fala de tudo e constantemente, num chorrilho de sabedorias sem fim.
A mulher a seu lado não tem nome nem rosto. É uma mulher num assento de autocarro. Não sabe que essa mulher tem uma cereja no lugar da voz. Cereja cresce e vira maçã, grande e opressiva, e então a mulher solta um soluço que soa como uma imprecação no autocarro calado. Ela é raiva de si mesma porque não susteve as lágrimas e essa atrapalhação que sente, como quem cometesse uma indiscrição, é um pedido de desculpa. Também para a pessoa a seu lado, que não consegue fixar uns olhos lacrimosos e a espreita, constrangida com tamanha mostra de impudor. E talvez o mesmo olhar piedoso com que se olha um louco na rua.
Mas ela não é louca, não ainda, não dessa loucura que é um decreto dos outros. E, por isso, maior a estranheza dos que a tomam como igual. Os loucos são olhados com piedade e benevolência, são loucos que não ofendem, porque são loucos. Ela está no outro círculo e prevaricou. Foi um descuido. De ora em diante, terá o cuidado de ser louca numa caixa sem janelas, para que ninguém veja e se ofenda. E da próxima vez, fará da cereja um sorriso, numa hipocrisia que é o pão nosso de cada dia.
Se seu texto fosse só...
ResponderEliminar"Ela está no outro círculo e prevaricou. Foi um descuido. De ora em diante, terá o cuidado de ser louca numa caixa sem janelas, para que ninguém veja e se ofenda. E da próxima vez, fará da cereja um sorriso, numa hipocrisia que é o pão nosso de cada dia." já teria cumprido seu papel de nos mostrar seu talento
Cada vez melhor, Elizabete.
Bom domingo. Beijos.
grande o tempo do silêncio
ResponderEliminara loucura é o caroço numa cereja o doce numa maçã
sem ele, os autocarros nunca desenhariam escritas
muito bonito, EA!
um abraço
Uau!
ResponderEliminarDeixo-te a música de que te falei:"Anda comigo ver os aviões" dos grandes Azeitonas - http://www.youtube.com/watch?v=L8aYZGpTabQ&feature=feedf
Espero que gostes.
Beijinhos,
Sónia
Do que, por vez, extravasa. O conteúdo, o contido. Ser em jorros. Hemorragia da alma. Soro do sal que há em si. O porquê da lágrima e de sua descor: o invisível que nos transparece.
ResponderEliminargostei particularmente deste texto. expressas-te muitíssimo bem. Parabéns pelo bom trabalho.
ResponderEliminarhttp://www.the-hf-blog.blogspot.com/
Cativa a imaginação e faz-me supor tantas "loucuras".
ResponderEliminarUm bjinho
Isabel