sexta-feira, 30 de abril de 2010

Íris Arco-íris


Na especialidade do faz de conta, fui doutora do ursinho. No afã das ligaduras, maleitas, miminhos e beijos milagreiros, quem acabou curada fui eu…

A menina, de olhos vaidosos de azul impossível, disse-me o nome e, depois de acrescentar três ou quatro apelidos verosímeis, remata desta maneira…
- … Arco-íris.
- Como? Arco-íris? – isto disse eu, Alice que, na volta, já não sabe de que lado do espelho se encontra.
- O meu nome é Íris Arco-íris, mas os meus amigos não sabem, eu não lhes contei…
E este dizer tocou-me e logo soube que seria o pormenor do meu dia. Não esquecerei o menino de três anos que me disse ter nove, tal era a ânsia de crescer; ou esse outro que me disse que o coração do seu ursinho estava ali mesmo, na perna esquerda (e quem sou eu para discutir a anatomia dos brinquedos?); ou até essa menina que chegou até mim com um gato de pelúcia que picara a cauda nas urtigas enquanto perseguia mil coelhos e lebres.
Sabes menina, tu tens um arco-íris no nome e pintas de cores improváveis o nosso mundo cinzento e tristonho. Todos nós temos palavras magia no nome. Às vezes, tantas vezes, esquecemos. Eu gosto de pensar que tenho luas e estrelas no nome, mas os meus amigos também não sabem, eu não lhes contei. És capaz de guardar um segredo?

Uma vez, quando eu tinha seis anos, vi uma imagem magnífica num livro sobre a Floresta Virgem chamado "Histórias Vividas". A gravura mostrava uma jibóia a engolir uma fera. Fiz-vos esta cópia.
O livro dizia que "a jibóia engole a presa inteira, sem mastigar. Depois não se pode mexer e passa os seis meses de digestão a dormir."
Então, pensei e tornei a pensar nas aventuras da selva, peguei num lápis de cor e fiz o meu primeiro desenho. O meu desenho número 1. Ficou assim:
Fui mostrar a minha obra-prima às pessoas crescidas. Perguntei-lhes se o meu desenho metia medo.
As pessoas crescidas responderam: "Porque é que um chapéu havia de meter medo?"
O meu desenho não era um chapéu. O meu desenho era uma jibóia a fazer a digestão de um elefante. Para as pessoas crescidas entenderem, porque as pessoas crescidas estão sempre a precisar de explicações, fui desenhar a parte de dentro da jibóia. O meu desenho número 2 ficou assim:
As pessoas crescidas disseram que era preferível eu deixar-me de jibóias abertas e jibóias fechadas e dedicar-me à geografia, à história, à matemática e à gramática. E assim abandonei, aos seis anos de idade, uma magnífica carreira de pintor. Ficara completamente abalado com o insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As pessoas crescidas nunca entendem nada sozinhas e uma criança acaba por se cansar de lhes estar sempre a explicar tudo.
Escolhi, portanto, outra profissão e aprendi a pilotar. Conheci grande parte do mundo de avião. E, afinal, a geografia acabou por me prestar bons serviços. Saber distinguir a China do Arizona à primeira vista pode ser bastante útil depois de uma noite a voar sem rumo certo.
Com um trabalho deste género tive, evidentemente, uma data de contactos com uma data de gente importante. Vivi durante anos e anos no mundo das pessoas crescidas. Vi-as bem de perto. Não fiquei com melhor opinião delas.
Mal encontrava uma com um ar um pouco mais lúcido, fazia-lhe a experiência do meu desenho número 1, que nunca deitei fora. Queria verificar se realmente era capaz de entender alguma coisa. Mas ouvia sempre a mesma resposta: "É um chapéu." Então, não me punha a falar de jibóias, de florestas, de viagens ou de estrelas. Punha-me ao seu nível. Falava de bridge, de golfe, de política e de gravatas. E a pessoa crescida ficava toda contente por ter conhecido um homem tão sensato.

O Principezinho, Saint-Exupéry

domingo, 25 de abril de 2010

Numa noite de Abril, uma lua quase redonda foi postar-se à minha janela e entrou-me na alma…

"Como iremos além da encruzilhada
Onde os seus olhos de astro se quebraram?" (Sophia)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Cinderela



Eles são duas crianças a viver esperanças, a saber sorrir.
Ela tem cabelos louros, ele tem tesouros para repartir.
Numa outra brincadeira passam mesmo à beira, sempre sem falar.
Uns olhares envergonhados e são namorados sem ninguém pensar.

Foram juntos outro dia, como por magia, no autocarro, em pé.
Ele lá lhe disse, a medo: "O meu nome é Pedro e o teu qual é?"
Ela corou um pouquinho e respondeu baixinho: "Sou a Cinderela".
Quando a noite o envolveu ele adormeceu e sonhou com ela...

Então,
Bate, bate coração!
Louco, louco de ilusão!
A idade assim não tem valor.
Crescer,
Vai dar tempo p'ra aprender,
Vai dar jeito p'ra viver
O teu primeiro amor.

Cinderela das histórias, a avivar memórias, a deixar mistério.
Já o fez andar na lua, no meio da rua e a chover a sério.
Ela, quando lá o viu, encharcado e frio, quase o abraçou.
Com a cara assim molhada, ninguém deu por nada, ele até chorou...

E agora, nos recreios, dão os seus passeios, fazem muitos planos.
E dividem a merenda, tal como uma prenda que se dá nos anos.
E, num desses bons momentos, houve sentimentos a falar por si.
Ele pegou na mão dela: "Sabes Cinderela, eu gosto de ti..."


Carlos Paião

domingo, 18 de abril de 2010

quinta-feira, 15 de abril de 2010

E tem coragem, menina?

Sobre a profissão que escolhi para a vida só escrevi duas vezes. É dessas palavras prenhes de silêncio, que nos cala a arrogância e nos veste de humildade e pequenez.
Sou estudante de Medicina…
É muito provável que os olhos se abram de espanto e a voz que os acompanha se me dirija…
- E tem coragem, menina?
E eu retraio-me e pinto-me de culpa, por ter ousado coragem, desprezando essa frágil fraqueza que tanto lêem em mim. E no instante seguinte, lá vou arvorando um sorriso e levemente respondo…
- Pois hei-de ter.
Há medos estrebuchando dentro de mim, mas eu cerro os punhos e disfarço. Ninguém me perdoa os meus vinte anos. Não ali, onde responsabilidade se escreve com letra grande e portentosa.
Olham-me de fora e vêem um rosto de menina. Talvez questionem, como eu questiono, a firmeza de espírito desta criança. Mas quem assim me vê, não sabe da força de uma fraqueza. Tenho em mim um Cabo das Tormentas, dia a dia dobrado e feito Esperança…
Medicina não é, como me disseram um dia, acusando-me de ter traído uma qualquer sensibilidade, víscera, febre ou dor explícita sem traço de delicadeza. Medicina é Humanidade e, não desmerecendo lavores, não creio que em nenhum outro esta lição seja tão crua e genuína. E por isso o privilégio.
Não quero escrever palavras poesia. Ou pretensas lições de moral. Na vida, tantas e tantas vezes, não há propósitos ou fins, análises ou conclusões. Vamos sendo…
Hoje, vi a lágrima, o grito de dor, o esgar, a fealdade. E sobretudo o olhar, humano e ressentido, humano e magoado, humano e parado de esperança. Hoje senti-me pequenina e miserável. Não quero esquecer. Construímos castelos de areia, embotamos a alma de frivolidades, e a nossa humanidade bate tão mais fundo…

"Há no médico o desejo de ser santo, de ser maior. Mas na sua memória transporta, como um fardo, olhares, sons, cheiros e tudo o que o lembra de ser menor e imperfeito.
Este é um livro de confissões. Uma peregrinação interior em que a bailarina torce o pé, o saltador derruba a barra, o arquitecto se senta debaixo da abóbada, e no fim, ela desaba.O médico e o seu doente são um só, face dupla da mesma moeda. O médico provoca o Criador, não lhe vai na finta, evita o engodo. Mas no cais despede-se, e pede perdão por não ter sido parceiro para tal desafio."

Sinto Muito, Nuno Lobo Antunes
It doesn't hurt me.
You wanna feel how it feels?
You wanna know, know that it doesn't hurt me?
You wanna hear about the deal I'm making?
You be running up that hill
You and me be running up that hill

And if I only could,
Make a deal with God,
And get him to swap our places,
Be running up that road,
Be running up that hill,
Be running up that building.
If I only could, oh...

Running up that hill, Placebo

domingo, 11 de abril de 2010




Hoje recebi uma rosa branca. Todas as semanas minha mãe me oferece uma flor. “Para que se alegre o coração…” , lá vai dizendo.
Ela não sabe que faz versos. Tenho visto nascer assim tanta poesia… poesia que se escreve palavras, mas sobretudo gestos, entoações e olhares. E, sem que o saibamos, vamos sendo poetas por instantes…
As flores colhidas hão-de murchar, uma após outra. É o que penso e não sei porque o penso. Mas tenho pena…
Gosto de flores. Gosto da rosa em botão, colhida e oferecida, sem outro arranjo ou preparo; e tulipas alegria; e girassóis no quintal; e magnólias no jardim; e flores do campo no olhar… Gosto de flores. Gosto sim. Gosto tanto. Guardá-las-ei. Todas as flores que vou recebendo. Porque sei que a flor oferecida nunca se esquece. Pecado da alma seria…
Mas não me ofereças rosas, porque a rosa é essa flor tristemente bela, a flor da minha nostalgia.

Tu tens um medo

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

Cecília Meireles

sexta-feira, 9 de abril de 2010

"...chovia aquela noite..."
- Chovia no sonho?
- Oh, Doutor, o senhor sofre mesmo de poesias: então chove nos sonhos?
- Eu, poesias?
- Não é de agora. O senhor já anda poetando há muito tempo. Por exemplo, quando o senhor me aconselha para eu cortar nas bebidas...
- Acha que isso é poesia?
- Então não é? Cortar-se na bebida? A gente pode cortar nas árvores, cortar na roupa, cortar sei lá onde, mas diga lá Doutor, que faca corta um líquido? Só a faca da poesia.
- Você é que anda muito inspirado nestes dias, meu caro Bartolomeu.
- Ah, é verdade! Há ainda mais outra: o senhor diz que beber me faz gota. Sabendo os litros que bebo, Doutor, é preciso muita poesia para falar em gota...

Venenos de Deus Remédios do Diabo, Mia Couto

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Talvez esperança se leia sonho do avesso

Ensinam aos homens a esperança. A esperança como arrimo. Tantas e tantas vezes descabida, mas Esperança. O castelo dos homens também se sustém na mentira. Palavra feia e dengosa, mas necessária, pois que, se a consciência aguda, a fria razão pulsasse em nós em cada instante, o nosso destino seria a loucura (talvez a loucura seja o forçar do sonho, quando a humanidade lhes pesa, talvez). Há a crueza do sentir. Há humanos sentimentos desumanos. E nós não somos deuses. Não nisto.

sábado, 3 de abril de 2010

Intervalo





A menina ficou presa num rebate de vaidade. O vestido era lindo. Um tecido leve estampado de flores que lhe assentava gentilmente sobre o corpo esguio. E aquele pormenor… a fita cor de rosa que lhe envolvia a cintura, ajustando-se num laço que caía numa languidez airosa pelas costas.
Tanto gostou do vestido, que decidiu que não o compraria. Precisamente por isso, porque gostara tanto dele. Guardaria para si esta vaidade, vestiria a alma e não o corpo. Ficaria com a imagem, prescindindo do dia em que se olharia ao espelho e o vestido, gasto pelo uso e pelo trato, lhe pareceria menos belo.
Naquela noite que seria a única, vestiu-se dele. Penteou o cabelo, escuro e escorrido. E esses seus cabelos foram cerejas numa primavera que haveria de desenhar pelo seu punho. E os lábios eram pétalas de uma flor a haver. E a pele era o aroma de uma carícia. E nos pés, as sabrinas que, mais tarde, noite dentro, descalçaria, porque quem dança com a lua tem os pés nus. Os pés nus e a alma despida.
E dançou. Com a alma transida de emoção, dançou. Dançou um sonho, um sonho menino que haveria de crescer em si, com a força de um querer imenso, inquebrantável.
Menina, a luz que te brinda o olhar é tua e dos sonhos que te percorrem e animam só tu sabes. E dançarás, menina. Dançarás sonhos, sentimentos, sensações. Dançarás medos, fracassos, desilusões. Dançarás instantes e eternidades. Dançarás aromas e sabores. Dançarás vozes e olhares. Dançarás a vida, aquela que te encontra e aquela que perseguirás, teimosamente, até que te aconteça.
Dançarás, como danças hoje, banhada pela luz branca de uma lua feiticeira…