domingo, 28 de fevereiro de 2010

- Vou contar-lhe uma história.
E falou de um incerto pai que não sabia dar tamanho ao amor pelo seu filho. Certa vez registou-se um incêndio no casebre em que viviam. O homem pegou no menino ao colo e se afastou da tragédia, caminhando pela noite fora. Deve ter superado o limite deste mundo, pois quando, por fim, decidiu colocá-lo no chão, reparou que já não havia terra. Restava um vazio entre vazios, rompidas nuvens entre demasiados céus. Para si mesmo, o homem concluiu:
- Agora, só no meu colo meu filho encontrará chão.
Nunca esse menino se apercebeu que o imenso território onde depois viveu, cresceu e fez filhos não era senão o regaço do seu velho progenitor. Muitos anos depois, quando abria a sepultura do pai, chamou o seu filho e lhe disse:
- Vê a terra, filho? Parece areia, pedras e torrões. Mas são braços e abraços.
Mia couto, Jesusalém

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Tempestade

Hoje sou de gelo e frio.
E quero o ruído, quero a superficialidade. Quero os rostos e vozes desencontradas. Quero as palavras fáceis desses que gritam lá fora. Quero que essas palavras, ocas, vazias de pretensões de estilo ou alma, me calem. Quero que se cale a voz do sonho, quero que a calem. Quero o desengano de uma solidão ruidosa, disfarçada.
Hoje sou de gelo e frio.
E procuro o esquecimento neste lugar feito de rostos e vozes estranhas. Fujo, como um condenado que se recusa a ver e aceitar. Fujo para longe, mas até aqui a solidão me toca. O medo grita mais que todos os gritos.
Hoje sou de gelo e frio.
E o sussurro desse vento rude e grosso a não me deixar esquecer. E a lembrança de uma noite que se vai construindo instante a instante. A noite, o espelho mais duro, a solidão mais sentida, o assombro. A noite encontra-nos. Encontrar-nos-á sempre.
Hoje sou de gelo e frio.
E o maior medo está dentro de mim.


o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo e ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

José Luís Peixoto


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

... morremos
talvez sem notarmos que morremos muitas vezes
e que levamos camadas de luto sobrepostas na pele.

José Luís Peixoto

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O vendedor de flores


Ano após ano, nesse dia, reúne as flores que não vendeu e encaminha-se para a velha ponte. Aí se senta, aí as dispõe. Rosas, sobretudo rosas.
Pega em cada uma delas. Um gesto de delicadeza inconsciente. Como se cada flor fosse um coração humano. Como se intuísse a fragilidade…
Corta-lhes o caule e pousa-as na água. Todas as rosas, excepto uma. E elas lá vão, no suave embalo da correnteza.
Na manhã do dia seguinte, olhos tristes que se passeiem pelo rio, iluminar-se-ão por um instante. Uma mensagem de esperança. Um sorriso do deus distraído que faz do desencontro a maior marca da nossa vida. E, por um instante, olhos tristes deixarão de o ser…
Talvez no ano seguinte, os olhos tristes ainda mais tristes se passeiem por aquelas águas benditas. E, uma vez mais, as rosas virão ao seu encontro pelas mãos de um desconhecido.
O vendedor de flores levanta-se. A última flor na mão. No seu caminho de casa, escolhe uma porta ao acaso. Todos os anos uma porta diferente. E aí pousa a última flor. Com uma mensagem muito singela… “Em algum lugar, há alguém que te ama…”.
Sei-o.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Amor.

Escrever amor.
Esta noite, rodeei-me de palavras que dizem amor. E um coração de vidro estalou de comoção por se encontrar aí, nesse espaço feito de palavras ternas, espreitando os olhares que se fitam com a urgência desesperada de um querer sem freio ou medida.
Percebi que amor já foi escrito muitas vezes. Mas, de cada vez, em cada coração, há um mundo que nasce. Cada novo dito tem a beleza de um sentimento que nasceu puro e intocado. Também eu gostaria de escrever amor. Como quem procura. Como quem espera encontrar. Mas como se escreve o estremecimento da alma? É difícil escrever todas as palavras do mundo; ou o silêncio gritante, que surge como marca de um pasmo ou rendição.
O amor como fraqueza da alma. A fraqueza mais forte. O amor como uma medida do impossível. Mas uma impossibilidade tão certa…
Escrever amor. Não sei e por isso calo. Calar amor. Calar amor no silêncio comovido de um coração que bate no compasso de um sentimento sem nome.

O Beijo



A loucura


Tinha nome de vida inconformada e lembrança de um amor infinito que me ligou a mim, Pedro de Portugal, a D. Inês, a do «colo de garça».
Trazia memórias de Inês e pregões de motivos injustiçados pela sua morte. Desde aí fui justo, sisudo e louco ao mesmo tempo.
Não sei se se ama alguém com loucura, ou se se ama a loucura por motivo de alguém.
De repente, num dia certo, no meio daquela larga rua da vida, deixa de saber-se onde se está, nem o que se é ou quem.
E fica-se preso à fixidez branca de uma ideia imóvel, feita memória perene.
A voz começou-me a deslizar em ruínas sob a minha gaguez. Roía-me o pensamento, estorvado de exprimir-se.
Quem é que morreu no dia em que morreste, Inês?
A vida somos sempre nós e mais alguém. Mas quando um morre, todos morrem. Sobrevivem apenas pedaços, desencontrando-se no caminho interrompido.
O vento faz o seu caminho e o apaga na passagem.
Só o homem tem sempre vontade de voltar ao impossível.

O amor infinito de Pedro e Inês, Luis Rosa

"O que me comove tanto neste principezinho adormecido é a sua fidelidade a uma flor, é a imagem de uma rosa que, mesmo quando ele dorme, brilha lá dentro como a chama de uma vela."
O principezinho, Saint-Exupéry



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Um véu de tristeza…

…um cisco na alma…

… uma nostalgia do ser…

… uma solidão que ainda não aprendeu a sê-lo e se revolta…

O Sol já se pôs, pequeno príncipe. Onde encontrarei, hoje, a minha gota de cor?


Ah, principezinho! Assim fui conhecendo, aos poucos, a tua melancólica vidinha! Durante muito tempo, a tua única distracção foi a beleza dos crepúsculos. Fiquei a sabê-lo na manhã do quarto dia, quando me disseste:
- Gosto muito dos pores-do-sol. Vamos ver um pôr-do-sol...
- Mas primeiro temos de esperar...
- Esperar por quê?
- Esperar que o Sol se ponha.
Começaste por ficar espantado, mas, depois, riste de ti próprio. E disseste-me:
- Ainda julgo que estou no meu sítio...
Pois é. Quando os relógios marcam meio-dia nos Estados-Unidos, toda a gente sabe que o sol se está a pôr em França. Bastava poder chegar a França num minuto para se assistir ao pôr-do-sol. Mas, infelizmente, a França fica longe de mais. No teu planeta pequenino só precisavas de empurrar a cadeira. E vias quantos crepúsculos quisesses...
- Um dia vi o Sol pôr-se quarenta e três vezes!
E pouco depois, acrescentaste:
- Sabes, quando se está muito, muito triste, é bom ver o pôr-do-sol...
- E no dia das quarenta e três vezes estavas assim tão triste?
Mas o principezinho não me respondeu.
O Principezinho, Saint-Exupéry

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010



… E, vezes sem conta, dei por mim estacada diante de um velho casario. Do lado de fora de muros e portões, quieta, muito quieta, quedada numa contemplação silenciosa e reverente. Essas velhas casas olham-nos, vigilantes e, nesse olhar, velho de tempo e gerações, velho de vida, desenha-se uma dignidade solene, que nos modera os gestos e a alma.
Altivo o porte, sobranceiro o olhar e um fascínio que não saberei explicar. A pedra antiga e gasta. A beleza de cada detalhe. Os brasões como símbolo de uma força vulnerável. O tempo escorrendo húmido e frio pelas paredes cansadas. E as histórias, sobretudo elas. Não são casas, são memórias empedradas.
Nesse dia, o meu destino foi aquela casa. Entre as muitas que vi, foi aquela. Todas as outras, mal grado a idade de séculos, conservam ainda um resquício de vida. Aquela não. Foi bela. Certamente que sim. Hoje, sorri debilmente, as janelas entaipadas, o rosto cerrado de uma morada esquecida. E as flores, sim, as flores… também elas ressequidas, exauridas, cansadas, esgotadas. Flores que venderam a alma naquele lugar de silêncio e que para lá ficaram, carcaças de uma beleza que só lembra pela memória a que faz apelo.
Naquele dia, o meu destino foi esse lugar. Toquei a pedra fria com a minha mão, fria também, como sempre está. Subi a escadaria. Olhos estranhos que me vissem, talvez me apontassem o dedo pelo atrevimento. Mas olhos estranhos nada sabem e, naquele instante, eu pertencia ali. Sentei-me num degrau e assim fiquei, sonhando um passado que não me pertencia, sentindo uma saudade que tinha o meu nome inscrito, mas não era minha. E lembrei-me daquela canção, aquela que fala de uma casa como se falasse de uma mulher magoada…


"E esse teu ar grave e sério
dum rosto e cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria

Ver-te assim abandonada
nesse timbre pardacento
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento

E é sempre a primeira vez
em cada regresso a casa
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa "