sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.
Vasco Gato



segunda-feira, 27 de dezembro de 2010


Dentro, onde ela está, há a janela recortada contra o escuro e é essa a noite. Mas fora é noite também. Noite deles, vagabundos, viciados, poetas malditos. Noite, correndo livre, dispersando-se por ruas e becos, aspergindo-se sobre os pobres sem rosto que vestem de negro e espreitam das sombras. Mas dentro é noite também. Noite refém, correndo em círculos, mas noite também. Diferente, mas noite.
Há dentro o candeeiro e a luz amarela, morna, tingida. Luz baça, que a luz muito branca fere como ácido. Há sombras que se projectam nas paredes. A sombra mais nítida é o desenho do seu corpo decalcado na parede. Deitada, volta-se para a parede e é como se olhasse a sua sombra nos olhos. Mas a sombra não tem olhos, é apenas o contorno dos vales e fundos do seu corpo. A curva da fronte, as pestanas, a linha das maçãs do rosto que se movimenta se ela forçar um sorriso, o contorno dos lábios, a depressão do pescoço e os ombros que respiram e fazem desta uma sombra viva, uma sombra que ri. O traço continua-se ondulante, corpo deformado pelas cobertas que aquecem e encobrem.
Se desligar a luz, a sombra morre. Morrem as cores, morrem as formas. Abre e fecha os olhos e a escuridão é quase a mesma. Não há hoje lua sinaleira que suavize o escuro, essa mancha de negro que os olhos enxergam porque nada enxergam.
Vai tenteando o escuro e liga de novo o interruptor. Da lâmpada nasce a luz. Nesse momento, decide que há-de adormecer sem querer, assim como quem se distrai e pronto. E a luz acesa há-de ser metade culpa, metade esquecimento.
A luz fere de morte o negro, mas não o silêncio. Silêncio. Quanto silêncio. Silêncio tão calado que grita e lhe zumbe aos ouvidos como um peso. Silêncio. Tanto silêncio. Ouve a pele deslizando sobre a pele, é o seu corpo falando baixinho. A madeira da cama range, dedo em riste acusando o corpo inquieto, desassossegado.
Noite é o escuro, o naco de silêncio e a solidão. Mas é isto a solidão? Aqui se veste o segredo e a intimidade, às vezes a dor do abraço ausente. Mas sempre a certeza, quando vem a solidão mais fria, está, tantas e tantas vezes, alguém sentado a seu lado.

- O que se consegue quando se fica feliz?, a sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.
- Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
- Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? - repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
- Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
- Ser feliz é para se conseguir o quê?
Clarice Lispector

Beijo

Não posso deixar que te leve
O castigo da ausência,
Vou ficar a esperar
E vais ver-me lutar
Para que esse mar não nos vença.
Não posso pensar que esta noite
Adormeço sozinho,
Vou ficar a escrever,
E talvez vá vencer
O teu longo caminho.

Quero que saibas
Que sem ti não há lua,
Nem as árvores crescem,
Ou as mãos amanhecem
Entre as sombras da rua.

Leva os meus braços,
Esconde-te em mim,
Que a dor do silêncio
Contigo eu venço
Num beijo assim.

Não posso deixar de sentir-te
Na memória das mãos,
Vou ficar a despir-te,
E talvez ouça rir-te
Nas paredes, no chão.
Não posso mentir que as lágrimas
São saudades do beijo,
Vou ficar mais despido
Que um corpo vencido,
Perdido em desejo


quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Esta é a história da menina que vivia fazendo bolas de sabão. Soprava levemente, pois que a delicadeza era o segredo deste talento, e da argola nascia uma bola que crescia e crescia e logo se recortava e voava ali ao perto. Bolas de sabão que eram como pedaços de magia. Ou borboletas encantadas que voavam em seu redor enquanto ela abria os braços, fechava os olhos com força e fazia girar o corpo louco até se sentir tonta de alegria. Acabava por cair de joelhos no chão e esfregava com as mãos a terra no rosto, porque tudo é sensação.
Esta é a história da menina que vivia fazendo bolas de sabão e, um dia, a verdadeira magia aconteceu. As pequenas bolas de sabão eram muito frágeis, isto a menina já tinha aprendido. Estalavam de susto se embatiam em qualquer superfície dura da realidade; rendiam-se ao vento agastado que lhes gritava que saíssem do caminho. Bolas de sabão eram magia e magia não tem lugar neste mundo, mas a menina acreditava que um dia uma dessas bolas de sabão teria a força necessária para chegar aos céus. E por isso perseverava e perseverava e às tantas já se esquecia da bola de sabão que haveria de voar bem longe, mas perseverava…
No dia em que descobriu a tristeza, saiu-lhe do peito um suspiro interminável, o último sopro da infância, e com ele nasceu uma bola de sabão tão grande, mas tão grande, que mais parecia um mundo. E a menina subiu no ar envolta nesse mundo de sabão que criara. Quando chegou ao céu era de noite. A noite é o escuro, as estrelas e o luar. Pensou em levar consigo a lua quando regressasse, mas sabia, já então, que nunca teria braços para abraçar uma lua tão grande, além de que, por muito distraídas que andassem as pessoas, decerto notariam o furto… Não, o lugar da lua era aquele, de tal forma que nunca pudesse ser olhada de frente, para olhar a lua é preciso alçar a vista, erguer a alma.
Pensou então em levar uma estrela, talvez presa entre os cachos do cabelo, talvez escondida na algibeira. Ninguém repararia e para ela seria tão importante. Escolheu a única estrela de cinco pontas que havia nas redondezas. Mas quando pegou com as mãozitas o seu astro, percebeu que não podia deixar esse recanto do céu ainda mais escuro e foi então que lhe ocorreu. Levaria a estrela e colocá-la-ia ao peito, deixando em seu lugar o coração que doía.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

VIII


A Lady playing the piano
Carl Vilhelm Holsoe


(Aquela senhora na paragem de autocarro. Perguntaste-me o que tinha ela da viscondessa. O cabelo, respondi, duvidosa. Mas não, o cabelo da viscondessa é mais branco e mais comprido, embora raramente lho visto solto, ela usava-o preso num entrançado bonito.
Perguntaste-me se a concebia numa paragem, à espera de um autocarro. Perguntaste-me se o pai da senhora era homem que fumasse cigarrilhas. E eu não soube que responder, que nunca tinha pensado nisso.
Como explicar-te que não sei, que a personagem não é minha e que sou narradora de uma história que desconheço e que vou tecendo com palavras rotas de sentido?)

Um dia não me apeteceu ler, nem sequer aqueles livros que às vezes folheava distraidamente e que se compunham de gravuras de cidades que eu visitaria um dia, porque tinha decidido que veria o mundo inteiro, eu, que tinha o futuro como o meu mais precioso haver. E a distância? A distância era tão pequena, pois se o sonho dava passadas tão largas que eu mal o conseguia acompanhar.
Mas não me apeteceu ler e fui pôr-me à janela, olhando o fora. Estava de costas para a sala e foi assim que a música me surpreendeu. Não me voltei até ao momento em que se suspendeu, tão repentinamente como tinha começado. Foi esta a única vez que ouvi a senhora tocar. O bonito piano de cauda não era, afinal, um mero adorno, era um sonho insuspeitado, que ela assim me revelava. Talvez gostasse de tocar mais vezes, mas as mãos tremiam-lhe e certamente lhe doía escutar as notas vacilantes de um sonho envelhecido.
Não foi alegria. Não foi tristeza. Foi como se a alma tivesse crescido mais um palmo e não me coubesse no corpo. E a alma crescia e crescia e crescia e, a dada altura, já os olhos choravam a alma que não cabia.
Dedos de pianista ou cirurgiã, disse-me um dia a velha senhora. Mas eu já sabia que a música entraria em mim, mas nunca de lá sairia pelos dedos esguios; só pelos olhos, quando vertesse lágrimas, como quem chora canções.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010


Deixa a mão correr,
Longe do pulso que a confrange.
Escreve sobre coisa nenhuma,
Somente duas linhas de palavras rasuradas
Que te não deixem as noites tão sós.

sábado, 4 de dezembro de 2010

sábado, 27 de novembro de 2010




Usava o cabelo cortado rente e vestia-se com um desleixo que lhe assentava muito bem. As calças de ganga um pouco gastas. As botas castanhas que, nos passos de uma menina que vivia calcorreando ruas, há muito conheciam a cidade. Os camisolões que lhe disfarçavam o corpo magro. O impermeável de capuz vermelho que lhe permitia dispensar o guarda-chuva. A mala roçada que usava a tiracolo e onde guardava o caderno Moleskine e a velha máquina fotográfica, que sempre a acompanhavam.
Era bonita, muito embora olhasse a vaidade lá do alto, votando-a ao desprezo. Tinha olhos grandes no rosto miúdo, olhos que pareciam abertos de fome para o mundo. O corpo magro. As mãos frias, que o ditado diz que existem em troca de um coração quente.
Nos autocarros sentava-se nos bancos que ficavam de costas para o condutor e que a maioria das pessoas rejeitava, porque fomos feitos para nos sentarmos de frente. Às vezes, era a única pessoa no autocarro sentada nessa posição e podia olhar de frente todos os outros passageiros. E era disso que ela gostava. De escutar conversas alheias. De tropeçar em momentos. De sentir emoções no espelho dos rostos. De adivinhar vidas. De criar histórias. Às vezes, mendigava afectos, olhando estranhos fundo nos olhos e pedindo-lhes em silêncio que lhe lessem a alma desnuda. A maior parte das vezes, porém, amava a sua solidão.
Sentada num banco de jardim, ela não falava de si, mas escutava a vidas das pessoas que se sentavam ao seu lado. Às tantas, já confundia rostos e histórias. Velhinhas passavam-lhe para as mãos retratos a sépia do marido morto ou imagens de belas jovens encostadas ao capô do carro com a saia adejando ao vento e um sorriso pleno de futuro no rosto. Havia às vezes as lágrimas que ela recolhia na concha das mãos, quase como Blimunda, que recolhia as vontades que fariam voar um dia a passarola. E afinal, que são lágrimas, senão vontades desfeitas?
Vivia no sótão de um prédio antigo numa zona triste da cidade. Um espaço exíguo, um tanto atulhado. Um espaço cunhado de simplicidade e despojamento, a não ser aquela secretária colocada diante de uma janela. Uma secretária linda onde estava pousada uma máquina de escrever que adquirira numa loja de antiguidades quando se perdeu nas ruelas de uma cidade. Um mero adorno, porque ela escrevia à mão, com uma caneta Montblanc. Porque ela escrevia e era este o seu luxo, o seu capricho.
Às vezes, ficava muito triste, mas logo se lembrava que tinha as palavras. Sentava-se à secretária e, esquecida dos prédios cinzentos que adornavam a paisagem, escrevia. Gostava de pensar que a sua janela tinha vista para a Lua. Essa Lua que talvez um dia tivesse nos braços.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

VII

A senhora era a mais nova de onze irmãos, quase todos já mortos. Foi criança em casa abastada, onde os criados a tratavam por menina. A mãe era uma figura pequenina de saúde delicada. O pai era o senhor sério que a senhora, nessa altura menina apenas, tratava com respeito, dirigindo-se-lhe quase a medo:
- A sua bênção, senhor meu pai.
- Deus te abençoe, minha filha.
Chegada a idade, partiu para Coimbra e aí estudou durante dois anos ciências farmacêuticas. Não chegou a terminar o curso, os livros enfastiavam-na e havia nela uma pressa de viver que não a deixava sossegar.
Foi hospedeira de bordo e guia turística nas terras do além mundo. Fez a mesma rota vezes sem conta.
Um dia, volvidos muitos anos, regressou à aldeia que a viu nascer. Instalou-se na casa grande, sem marido, sem filhos e por lá ficou, soberana na sua reclusão.
Dos amores, dos desvarios, das agruras nada se sabe. A senhora regressou vestida de silêncio.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010


sábado, 20 de novembro de 2010

VI

Antes do regresso a casa, havia ainda o lanche com a senhora. E agora que penso nisso, é possível que, desde o início, ela não se limitasse a receber-me, talvez me aguardasse até. Porque na mesa, para além do requinte servido em loiça de porcelana, havia sempre fatias de bolo, biscoitos de canela, bombons embrulhados em quadradinhos de papel colorido…
A senhora pouco comia. Bebericava uma chávena de chá e debicava a bolachinha. O costume. Já eu comia com a vontade própria das crianças, mas tendo sempre cuidado para não manchar a toalha de linho rendada que cobria a mesa. Não falávamos. Ela olhava-me placidamente e eu, nesses momentos, degustando o quadradinho de chocolate na minha boca gulosa, era mais criança do que nunca.
A senhora sentava-se muito rígida na sua cadeira e havia nos seus modos tanta correcção e aprumo. Aprendi a sentar-me direita, sem me apoiar no espaldar da cadeira e, quando cresci mais um pedaço e consegui finalmente tocar com os pés o chão, aprendi a cruzá-los com delicadeza.
Lá fora, eu corria descalça pelos campos, o cabelo em desalinho, o rosto afogueado e os joelhos tantas vezes esfolados dos descuidos. Lá dentro, porém, eu era uma senhorinha.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

V

Às vezes, raras vezes, a senhora falava. Não falava comigo, mas falaria para mim? Eu escutava de costas voltadas e fechava os olhos às chamas que enlouqueciam na velha lareira de pedra. E sentia a intensidade do calor queimando-me o rosto e nem assim eu abria o olhar à violência das chamas. Uma voz rouca de desuso, que logo se abria em claridade. E como era bela essa voz saída do silêncio, do dentro, do lugar das palavras coroadas.
Falava de lugares, nunca de pessoas. Mas falava dos lugares como se falasse de pessoas. Dos amores que levaram consigo o calor do abraço e deixaram apenas memórias, cinzas, restos de sonho que pouco aquecem os dias na idade da morte. Deles não me falou. Mas falava dos lugares do mundo com o mesmo ardor de quem recorda uma noite de amor numa Paris chuvosa, lá fora lampiões brilhando e bêbados sorvendo a noite em largos tragos. Só mais tarde o pensei. Muito mais tarde, quando descobri que, depois de tudo, tanto ou tão-pouco, fazemos das pessoas o nosso lugar no mundo. Mas a senhora não me deu o tempo de crescer e questionar e hoje eu não sei o porquê. Talvez lhe doesse a humanidade…
Terminava suavemente e o silêncio que se seguia era ainda uma palavra na sua história. E quando finalmente abria os olhos, a senhora já não estava na sala. Só eu e as chamas de um lume agora mais brando.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

IV

E foi assim que a visita à senhora passou a fazer parte da minha rotina. Eu aparecia e ela recebia-me. Sem excesso de cortesia ou familiaridade. Nunca percebi se me esperava ou se, pelo contrário, se lembrava de mim apenas quando escutava o batente soando pela mão da minha criança.
Passávamos as tardes na biblioteca. A senhora sentada na sua velha poltrona e eu num sofá ou no chão, quando queria ficar mais perto do lume. Não falava muito. Tantas as tardes em que não trocáramos palavra. Eu lia e ela olhava. Às vezes olhava-me. Eu sei, porque sentia um leve peso na nuca. Ternura. Curiosidade. Rancor. Sim, estou em crer que houve momentos de rancor liquefeito no seu olhar. Mas nunca, nem nesses pretensos momentos, me senti intrusa naquela casa. Nunca.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

III

A casa era magnífica. Tinha a beleza arquitectónica que nenhuma obra moderna poderá alguma vez imitar, porque o seu grande atributo é a idade. É a beleza da pedra gasta. Da hera que lhe cobria metade do rosto de cantaria. Das janelas de guilhotina. Do ferro forjado dos varandins. De tudo o que eu não sei dizer porque não conheço as palavras.
Por dentro, os móveis de pau-santo, as tapeçarias que cobriam o soalho que tantas vezes rangia de cansaço, os lustres, os espelhos, as molduras, os dosséis e o piano, o piano de cauda que era a peça mais bonita de toda a casa. E tudo o que não sei dizer porque não conheço as palavras.
E as rosas, já me esqueciam as rosas… Sim, a senhora apreciava muito as suas rosas.

II

O tempo passou. Nestas três brevíssimas palavras, assenta o resumo de dias e dias da minha vida. Sempre me fascina. Gerações de vidas cabem num livro. É só isto a vida, afinal? O tempo passou e eu passando com ele. Mas devagar. Sim, nesta altura o tempo era ainda vagaroso. Hoje é o contrário. Hoje tem pressa e eu não.
A senhora não era vista na aldeia. Pouco saía. Era a Lucinda quem cuidava dos avios da casa. A Lucinda, minha vizinha que, em palavras desajeitadas, lá ia contando histórias do velho palacete, de como eram belos os jardins, e longos os corredores, e finas as louças, e muitos os quartos. Sempre muito empertigada, zelosa da sua função de zeladora.
Quando eu passava junto da casa da viscondessa, eu olhava e tornava a olhar, com o descaramento da minha mente inquieta. E um dia, depois de muitos, a senhora convidou-me a entrar.

I

Chamavam-lhe viscondessa e o seu nome não importa, estou em crer que poucos o saberão. Lá, na aldeia, aquela era a senhora viscondessa, última representante de uma nobreza rural há muito esgotada. Sempre fechada entre paredes, soberana na sua reclusão.
Muito antes do dia em que me convidou a entrar. Foi essa a primeira vez que lhe vi o rosto. Num dia de festa na aldeia. Eu usava um vestido de veludo cor de esmeralda e calçava sapatinhos de verniz preto. Porque era dia de festa. Caminhava pela mão de minha mãe, muito cheia da vaidade de estrear um vestido novo e cuidando para que as pedras, feitas de arestas e rugosidades, não maculassem os meus sapatinhos, que não eram de cristal, mas de verniz, que é quase a mesma coisa e, mesmo não sendo, a gente faz de conta, só pelo gosto de ver a criança feliz.
Dia de festa. Minha mãe troca com a senhora palavras de circunstância. Eu fito-a com uma insistência desusada e ela sorri. E foi espanto de alma calada, porque aquela velha senhora era tão bonita. E ainda olho de soslaio os sapatinhos de brilho e o vestido feito de maciez, e apercebo-me que a beleza, naquele recorte de tempo, naquele instante, estava também para além de mim, muito embora eu fosse uma menina que estreava um vestido.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Chamava-se Escritor, pois era um fazedor de palavras. Tinha em si o dom mais bonito do mundo e vivia escrevendo livros. Livros que muitas pessoas liam, tantas pessoas, livros exibidos em expositores em grandes livrarias, livros que a menina lia com sofreguidão no recato anónimo do seu quarto.
Quando leu os livros do Escritor, ela compreendeu. Cada palavra, cada contexto, cada sentimento, cada ênfase. Mas o pensamento não falou exactamente assim, e o que soou foi que tinha sido compreendida. Um revés de sentido, que a coloca a ela no centro do mundo.
Mas tantos o lêem. Talvez ela esteja enganada e o milagre da compreensão não seja tão raro assim.
Um dia, ela soube que o Escritor estaria na cidade. Sentiu curiosidade, não muita, mas o suficiente. Pois bem, faria por estar presente. Apanhou o autocarro para a tal cidade e caminhou por longo tempo até encontrar a livraria. Enquanto caminhava, procurava sinais. O que esperaria encontrar? Uma cidade engalanada para receber o Escritor? A cidade estava igual ao que sempre fora, só nos seus olhos havia um brilhozinho de expectativa comedida.
A menina não falou com o Escritor. Entrou na livraria e voltou atrás. Às vezes desilude-se com as coisas e, pelo sim pelo não, não valia a pena arriscar. Teve medo de descobrir que, no fim de contas, todos fingem, todos mentem. Até o artista, que vive a arte a intervalos.
O que escreve o Escritor é tremendo. Como um dedo esticado que toca por acaso um coração ferido. Dói, mas acorda o grito e traz a vida.
Ele é o Escritor. A menina de que vos falo uma leitora, que sonha em segredo que um dia lhe chamem o mesmo nome também. É só um sonho. É tudo este sonho.
Nasceram sob o signo do mesmo amor. A ele não lhe faltam palavras, enquanto ela parece ser dona de um destino calado e silente. Por um dom como aquele, ela venderia a alma e seria tão pouco.
Não sabe escrever amor, mas sabe senti-lo e tem em si o orgulho indecente de acreditar que ninguém ama mais do que ela. As palavras.




... Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector

sábado, 9 de outubro de 2010



A noite é o lugar dos chacais. Desde sempre o soube. Mais do que saber, pressenti, pressinto. Amor e morte, os saberes pressentidos mais vívidos do meu lugar de dentro. Amor e morte, caminhando de mãos enlaçadas pela vida humana, numa intimidade que arrepia.
Adormeci com a chuva escorrendo ruidosa pela janela. Queria que soubesses como a chuva me entra coração adentro num sossego franzido de inquietação. Queria que soubesses tanta coisa, mas tardas em mostrar-me o rosto. A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno. A chuva lá fora fustigando velhas telhas e beirais e recordando o frio que não há, porque o amor é um calor prazeroso e aconchegante.
Mas também a solidão pode ser perfeita em momentos. Há pouco, quando encostei a cabeça para dormir, sabia que podia abrir o caderno de capa gasta e escrever. Há na vida sentires perfeitos, há no mundo chuvas de beleza irrepreensível, capazes de calar a dúvida incerta do talento mais inepto. Com a monção, não deixarão de vir embaladas em água. Oh sim, eu podia ter escrito palavras, mas a preguiça tolheu-me a intenção. Eu podia ter escrito palavras muito belas, mas antes assim, pois que, escrevendo-as, talvez me visse a braços com a frustração. Antes o paradoxo de sonhar o sonho.
Adormeci, mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer. E acordei com o coração desgraçado de terror sem lágrimas e abri muito os olhos para não dormir outra vez. E aqui estou, meneando a cabeça de sono, e escrevendo as palavras, não sei se as tais de que fugi se outras, escrevendo o que amanhã me parecerá, porventura, estranho e longe.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Quase amor


Klimt


Então é assim que o amor acaba? Num breve olhar assombrado.
Eles fitam-se através de metros de gente, carros, ruídos da via pública. Fitam-se num instante que dura uma eternidade, pois o tempo faz-se de mentiras. Instantes suspensos na eternidade dos afectos, mas também a brevidade das eternidades prometidas.
Um dia, foram amantes. Nessa vida que passou, um dia era o futuro, hoje é a tristeza de uma obra imperfeita. E aqui, a prova evidente de que tudo pode ser o que é e o seu contrário. Um dia será. Um dia foi.
Amantes: a palavra que soa como segredos partilhados na calada da noite. A palavra que soa baixinho, como murmúrio de amor. Foram amantes. Nos dedos que se enlaçaram. Nos olhares que se fitaram. Nos lábios que se tocaram, rubros de desejo. Foram amantes que hoje se olham como estranhos numa história de quase amor.
“Terás esquecido as sílabas do meu nome?”. Ela sente um resquício de dor e surpreende-se, pois o que vem sentindo há dias é indiferença. Talvez uma lágrima cansada. Ainda. Se vier, calá-la-á.
“Tinhas medo que os teus dedos gelassem se tocassem o meu coração frio? Cobarde. Nunca saberás sequer que te traíste.” Ele viu lágrimas nos olhos tristes da menina branca. Lágrimas que a boca dele não bebeu e ela soube como podem ser frias as lágrimas que molham o rosto. E o amor morreu.
“Não te amei, escolhi amar-te.” Ela não o amou, escolheu amá-lo. Pediu-lhe que lhe ensinasse o amor e aprendeu o quase amor, feito de perda e desencanto.
Para eles, o amanhã será jamais. Para eles, o nunca será a derradeira eternidade.



E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos arrastámos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes, construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para olhar as estrelas do céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite, abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha suspensas no tecto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na sua teia, contemplámo-nos longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde. Foi assim que vi desfilar os anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente. Heathcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.
Como explicar-te como tudo isto se te tornou alheio, como tudo te pareceria agora estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a Ítaca e Penélope alguma desfará de noite a teia que te teceste. E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter. Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem principio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu para sempre."

Não te deixarei morrer, David Crocket

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


Klimt


A menina nasceu num dia medonho, de chuva e vendaval. Gostaria de dizer-lhes que, à hora da sua vinda, os céus se abriram num interlúdio de luz, mas assim não foi, e os céus permaneceram mudos e indiferentes à sua chegada. A menina nasceu vestida de branco e trouxe o seu nome consigo.
- Sê bem-vinda, Clara, minha bem-amada.
Uma voz envelhecida adorna de magia o nascimento de uma criança entre tantas, num dia perfeitamente vulgar, no hospital da cidade. Clara é a sua neta e a avó sabe que a magia não tem forçosamente de existir, pode inventar-se.
A menina ouve com olhos abertos de espanto, o rosto iluminado pelas chamas bruxuleantes nascidas de meia dúzia de toros assentes na lareira de mármore. A menina ouve e parece não entender que a Clara de que falam é ela própria, reflectida nos olhos meigos e embaciados da anciã. E dá por si a desejar que o seu nome soasse exactamente assim, um sussurro de magia lançado ao vento.
Chamava-se Branca de Neve, porque era de alabastro a sua pele, de azeviche o seu cabelo e os lábios eram duas pétalas da rosa vermelha mais fresca e bela. Como pérolas de sangue em neve branca e imaculada.
- Oh Clara, teria com certeza o teu rosto!
Era mentira. O seu cabelo era escuro, mas decididamente castanho, a pele não era branca, tinha a cor da pele ora essa!, e os lábios eram rosados e não vermelhos. Hoje sabe que é o amor que nos adorna as feições aos olhos alheios. Teria preferido ser a Bela, com a sua devoção pelos livros, ou mesmo a Cinderela, mas talvez os sapatos de verniz preto que usava com vestidos de veludo não pudessem substituir os outros, de cristal. Sapatos de cristal! Talvez não lhe servissem de muito no seu dia-a-dia de criança, mas podia ser que o príncipe não se importasse de dançar a valsa da meia-noite com uma menina descalça, que subia às árvores e esfolava os joelhos.
Tem saudades da avó, de passar as mãos sobre o seu rosto enrugado, dos olhos de um azul líquido, como dois berlindes.
Lembra-se das noites em que se sentava sobre a cama branca, diante de um grande espelho e a avó lhe penteava o longo cabelo. Não há ternura maior do que essa. Vestia uma camisa de noite, branca e comprida e olhava as bonecas de beleza irrepreensível e pele de porcelana, frágil, muito direitas no seu suporte. E quando se deitava na cama branca, ficava por tempos infindos olhando o tecto à espera que chegassem. E levantava-se e abria a janela, para que pudessem entrar. Como se o menino que viria voando da Terra do Nunca ou o coelho que a conduziria ao País das Maravilhas, entre tantos absurdos de magia, tivessem alguma dificuldade em abrir uma janela. Enfim… Acabava por adormecer de cansaço, a janela aberta para a noite e um pensamento martelando-lhe a ideia… talvez se se chamasse antes Alice…
Hoje, tantos anos volvidos, penteia distraidamente o cabelo, mas a ternura do gesto está nas mãos que são de outro alguém e não suas. E sente uma estocada de dor porque sabe que já não pode acreditar.

A cidade continua nas ruas,
as raparigas riem, mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever

José Luís Peixoto

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Dream On Girl


Um eco de palavras ressoa nas paredes do meu corpo: gritos esparsos sufocados em meia folha de papel ou um silêncio amotinado.
Sou fraca por temer o dia em que, finalmente, deixarão de vir, caladas nas entranhas do que sou? Tenho medo que faltem, que não retornem, se chamo e elas não vêm. E adio a confrontação, agora não, mais tarde será. E as palavras que escrevi não me servem de consolo, porque nunca o que sou deve desmerecer o que fui. Ou assim o espero. Porque a conquista do ser é constante, praticada instante a instante, sofrida momento a momento. Uma labuta diária de interioridades, na busca de uma perfeição ou equilíbrio que não existirão nunca, porque há infinitos maiores do que outros. Há sim.
Não é birra de menina caprichosa, esta ausência tem corpo e ocupa tanto espaço. É a saudade do que não tenho. Saudade que Deus plantou em mim por engano. Porque deve ser engano nascer árvore sem raiz. Distracção. Castigo abençoado. Vou inventando sonhos que guardo numa mala que já não fecha e canso-me de a levar estrada fora. Hoje fiz da mala o meu assento e assim estou, fazendo beicinho por algo que ninguém me poderá dar. E bato o pé, e choro gritando e esperneio de fúria e desalento, criança bem treinada que fui, mas as palavras não são um brinquedo que se cobiça. São o meu amor amaldiçoado.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010


A chuva lá fora parece anunciar o fim do Verão. Já o vinha pressentindo há dias, na calma triste de um fim de tarde à janela. Dia estranho o de hoje, nas cores, nos sons, nos cheiros. Sentes o cheiro da chuva? Sentes-lhe o gosto na tua boca que se abre em oferenda perante os céus? Sentes o toque frio dos seus dedos de água na intimidade da tua pele? Calou-se por ora. Mas sei, com a ousadia de quem se deita a adivinhar, que mais tarde não deixará de vir. Porque hoje, quando a cabeça pousar sobre o travesseiro e o corpo se moldar ao calor morno da coberta, hei-de, por força da minha vontade, adormecer embalada nessa toada.
Há duas noites que as espero e elas não vêm. Pesou-me a ausência, sempre me pesa. Comprei um novo caderno, embora o outro tenha ainda tantas folhas em branco. Sabes que durmo com ele a meu lado para escrever as palavras que me visitam em sonhos? Este querer não está certo, não em mim. Que tenho eu, senão a fria lucidez de saber que existem mundos de oiro para lá do meu? De entre tantas, porque não hão-de ser minhas as mãos que se aconchegam no calor dessa chama luminária? Jugo ou bênção, porque não nasci eu sob essa luz?
O solitário a meu lado está vazio. Hoje não há flor que lhe adorne a solidão. Talvez amanhã me lembre de colher uma flor com pétalas de chuva do jardim de minha mãe. Farei por não me esquecer.
O som do tráfego lá fora já não o oiço, engolido por esse silêncio corpóreo que me envolve como a mantilha que me cobre os ombros nus numa noite inusitadamente fria de Verão.
Com o matraquear da chuva, chegaram enfim. Não são minhas. Nunca serão. Mas cada pedaço de chuva contém uma palavra emprestada que eu recolho em minhas mãos com a avidez dos que têm sede.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010


Quem é o terceiro que sempre caminha a teu lado?
Quando conto, só estamos tu e eu
Mas quando olho pela estrada branca acima
Há sempre alguém a caminhar junto de ti

- Mas quem é esse do outro lado de ti?

T.S.Eliot


Selo II



Do blogue Em tons de azul recebi o meu segundo selo. Obrigada JB! Com ele, o desafio de dizer nove coisas sobre mim. Oferece-o a todos os blogues que acompanho.
Pois bem, em jeito de brincadeira, aqui ficam 9 coisinhas sobre mim:

1. Não gosto no meu segundo nome, Carina, mas Elisabete é um nome muito meu;
2. Peyton Saywer, protagonista da série televisiva OTH, é a minha personagem de ficção favorita;
3. Não viajo muito, mas já conheci Florença. Hei-de voltar (para alguma coisa me hão-de servir as aulas de italiano que tive nos últimos meses);
4. Fiz ballet durante alguns anos; um colega disse-me que era cliché… a verdade é que gosto de alguns clichés;
5. Adoro chocolate e não gosto de cozinhar;
6. Gosto muito de conduzir e quer-me parecer que, muito em breve, vou ter uma motinha;
7. Detesto orgulho sem mérito, sobranceria, pobreza de espírito, mesquinhez, grosseria…
8. Aprecio o sentido de cortesia social;
9. Dizem que sou clássica…

domingo, 22 de agosto de 2010

Selo




A Em@ ofereceu-me o meu primeiro selo. Fiquei muito contente (foi o primeiro!) e recebo-o com muito carinho.
Dizem as regras que devo colocar o selo no blog, indicar o link do blog que mo ofereceu (http://emapretoebrancoouacores.blogspot.com/), indicar três blogues para receber o selo e comentar nos blogues indicados. Alguns dos blogues que sigo já receberam este prémio. Decidi oferecê-lo à Shell (http://ourmagicshell.blogspot.com/) e à Letícia (http://leticiakika.blogspot.com/), minhas amigas e a um blog cheio de arte, http://amatrizdossonhos.blogspot.com/.

sábado, 21 de agosto de 2010


Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.
Sophia

Sentença sem retorno ou apelação. É assim que recordo o que disseste. Compreendi, embora não tenha sentido. Mais tarde sim, haveria de sentir a crueldade de cada ênfase. Mais tarde, só mais tarde… Voltei-te as costas em silêncio, disfarçando de desprezo o meu orgulho ressentido.
Quando o meu corpo morria à míngua de um abraço, eu fugi de todos os afectos e parti em busca de uma casa junto ao mar, onde a dor vazasse num infinito maior e mais além.
Conduzi por estradas de ninguém. Por um tempo de horas, dirão os relógios do mundo. Por um tempo de dor, dirá a alma revisitada. Deixei que a música tocasse baixinho no rádio. Quis por força calar o silêncio que me lembra o escuro e a solidão. Mas a canção é quase sempre de amor e a palavra faz doer. E percebi que não importa. Seja voz ou silêncio, a dor não esquece.
Uma fiada de casas junto à costa. O areal é dos jardins mais belos que já vi. Vazias no Inverno. Não me recordo de alguma vez ter visto o mar num dia de chuva. O meu olhar é virgem em tantos mundos. Quando parei o carro, as lágrimas desabaram enfim. Uma confusão de três águas benditas, a lágrima, a chuva e o mar.
Antes de entrar na casa, limpei os olhos com as mãos violentas de quem sabe que terá uma lição dura e inútil pela frente, embora hoje saiba que assim não é.
Fixei o mar cinzento com o rosto erguido. Ninguém viu, mas eu tinha o rosto erguido. Aquele mar… Aquela chuva… Aquelas estrelas que eu pressentia sob o céu pesado e encoberto… Era isto que eu teria de aprender a amar acima de todos os afectos. Afectos são promessas humanas feitas com figas na mente, afectos são infinitos perecíveis e eu sempre me rendi às eternidades.


Meus ouvidos pousam na noite dormente como aves calmas
Há iluminações no céu se desfazendo...
O grilo é um coração pulsando no sono do espaço
E as folhas farfalham um murmúrio de coisas passadas
Devagarinho…

Em árvores longínquas pássaros sonâmbulos pipilam
E águas desconhecidas escorrem sussurros brancos na treva.
Na escuta meus olhos se fecham, meus lábios se oprimem
Tudo em mim é o instante de percepção de todas as vibrações.
Pela reta invisível os galos são vigilantes que gritam sossego
Mais forte, mais fraco, mais brando, mais longe, sumindo
Voltando, mais longe, mais brando, mais fraco, mais forte.
Batidos distantes de passos caminham no escuro sem almas
Amantes que voltam...

Vinícius de Moraes

sábado, 14 de agosto de 2010

Digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti
Alexandre O’Neill

Escolhi um desses vestidos de Verão de que tanto gosto, mas que tu nunca me viste usar. Soltei o cabelo que os dedos da aragem não tardaram a despentear. Caminhei descalça na noite e, saltando de estrela em estrela, cheguei a um lugar que não sei. E que importa que não saiba, se o lugar é um pretexto, se o lugar és tu?
Despojei-me da raiva, da mágoa, do desengano e deixei somente a tristeza e a memória dos dias felizes. Tu dormias e eu fui um ladrão na noite. Com passos de veludo, aproximei-me e pousei-te um beijo na face. Talvez, no sono que dormias, o tenhas sentido como uma brisa muito doce. Talvez, quando a manhã chegar, encadeando de luz a noite que tanto amo e temo, retenhas a sensação dessa leve doçura que, por um instante vestido de eternidade, te arranhou o coração. Olhei o teu rosto cego para o que sou e, de mansinho, como cheguei assim parti.
Um dia serás para mim uma memória vaga e distante. Talvez me ria das lágrimas que verti por um amor primeiro. Talvez se conserve a memória das mãos, nunca o saberei, mas o coração vai-se vestindo de gelo e indiferença.
Vai em paz. Eu serei um viajante na noite e vou amparar-me nas estrelas, constantes e eternas, como o amor que um dia me prometeste.


quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Olímpia


Ele emergiu do poente como se fosse um deus
A luz brilhava de mais no obscuro loiro do seu cabelo

Era o hóspede do acaso
Reunia mal as palavras
Foram juntos a Olímpia lugar de atletas
Terra à qual pertenciam
Os seus largos ombros as ancas estreitas
A sua força esguia espessa e baloiçada
E a sua testa baixa de novilho
Jantaram ao ar livre num rumor de verão e de turistas
Uma leve brisa passava entre diversos rostos

Ela viu-o depois ficar sozinho em plena rua
Subitamente jovem de mais e como expulso e perdido

Porém na manhã seguinte
Entre as espalhadas ruínas da palestra
Ela viu como o corpo dele rimava bem com as colunas
Dóricas

De qualquer forma em Patras poeirenta
No abafado subir da noite
Tomaram barcos diferentes

De muito longe ainda se via
No cais o vulto espesso baloiçado e esguio
Que entre luzes com as sombras se fundia

Sob a desprezível indiferença
Não dela mas dos deuses

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 3 de agosto de 2010


Klimt

A primeira vez que vieste até mim. Eu lembro-me. A cadeira onde me encontro sentada é a mesma. Nesta casa muito pouco mudou. Já era velha nessa altura, hoje não sei que idade tenho. Sou velha, muito velha, demasiado velha. Tão velha, que às vezes penso que a morte me esqueceu. Nasci para ser velha. Fui criança, fui moça, fui mulher criada, mas a idade é o vestido que melhor me cai.
Dizem que enlouqueci. Não é verdade. Se existe loucura, é a de sempre. Mas um dia dei por mim revivendo as minhas memórias em voz alta. Podia pensar, falar em silêncio, mas a verdade é que gosto de ouvir a minha voz. Eles escutam, orelha sempre arrebitada para o que lhes é alheio, e por aí se comenta. Talvez não haja nisso maldade, talvez seja um entretém que lhes corta a monotonia dos dias. No fundo, todos precisamos dos pequenos escândalos e burburinhos. Não é por mal, é só do jeito que somos.
Hoje julgam-me louca, mas dias houve em que me tinham muito respeito. Cria-se que tinha um dom. Nasci cega em dia aziago. Sexta-feira, décimo terceiro dia do mês primeiro do ano que já não sei. Pura crendice, que também nisto se enganaram. Mas precisamos de pilares de magia em nossas vidas. É do jeito que somos. Não, não tinha o dom, pelo menos não esse. O meu dom era muito humano, muito terreno. Sempre fui muito perceptiva, muito intuitiva, muito sensitiva no que toca à nossa humanidade. Talvez porque nunca olhei, vi mais do que todos eles. Leio a alma na voz dos que me falam e raras vezes me engano. Dom ou não, foi o que fiz. Ler pessoas, conhecer humanidades.
No dia em que te conheci, a porta rangeu de velha e no soalho cansado soaram dois ou três passitos curiosos. Tão discretos, que eu me atreveria a dizer que estavas descalça. Um dia, já crescida, disseste-me que era nos pés que sentias a liberdade do corpo, por isso digo que sim, talvez os trouxesses vestidos dessa liberdade. Dois ou três passitos, depois nada. Longo tempo passou. Eu nada disse. Tu olhavas certamente o bricabraque desta casa orgulhosa onde nasci e, a dada altura, o teu olhar terá encontrado o lugar vazio do meu. E então falaste.
- Senhora…
- Aproxima-te pequena.
E tu vieste, sem medo ou hesitação. Peguei-te no rosto e senti a textura do teu cabelo crespo e em desalinho.
- És muito bonita.
- Como pode saber?
Não havia insolência, apenas curiosidade.
- Pela voz, pela tua voz.


Aparte


Neste Domingo que passou encontrei-me com a Patrícia, a Sofia e a Ana, com quem partilhei casa em Coimbra durante os dois primeiros anos da faculdade. A Patrícia e a Sofia, que eu já não via há algum tempo, terminaram este ano o curso. Ofereceram-me um presente que vinha acompanhado de algumas palavras. Prometi que postava no meu blog e, portanto, aqui vai...

Ainda te lembras?

Parece que foi ontem, mas já passaram dois anos! Foram dois anos repletos de muitos momentos especiais na companhia de todas. Foram dois anos nos quais partilhámos casa, nos quais nos conhecemos melhor. Dois anos de muito estudo e de alguma brincadeira também. Dois anos de muitas malandrices, de muita música, de muita dança...
Ainda te lembras das surpresas que te preparávamos? E a música que te fizemos? E os serões passados no teu quarto? (naqueles dias em que tu querias estudar nós insistíamos em te chatear?) E as músicas que nos ensinaste de medicina (que nos permitiram ser tão felizes nos cortejos e nos jantares de curso!) Enfim, foram dois anos muito especiais na tua companhia!!! Serás sempre a nossa "dama Bete"! A doutoura "mais boa" do curso de medicina!
A nossa caminhada por Coimbra já terminou... A tua ainda vai ser longa... Apesar disso, obrigada por também teres estado presente!
E não te esqueças de um dia nos convidares para uma mega party na tua quinta (aquela em que vais estar junto do teu príncipe, que vai ter dois cavalos, cães,...) Ah e quando fores à Quinta das Lágrimas, queremos ser as primeiras a saber ;)! Porque depois já podemos ir todas juntas!

É claro que me lembro. E sei que a amizade não se faz de palavras profundas, essas vêm depois. A amizade são as travessuras, os risos, os momentos sem importância aparente. É claro que me lembro. Mas quero dizer-vos também que estamos vivas e a amizade não é um baú onde se guardam memórias empoeiradas. Lembro e prometo guardar, mas, sobretudo, desejo que continuemos a viver e a construir. Obrigada.


quinta-feira, 29 de julho de 2010



Esta é a minha resposta ao desafio que me foi proposto pelo AC:

Porque é que criou um blogue e, quando o criou, tinha expectativas de que fosse popular?

A minha relação com as palavras, através da escrita e, fundamentalmente, da leitura, é antiga. Conturbada, é certo, mas antiga. Momentos há em que me afasto, mas esta é a casa onde acabo sempre por regressar. Sempre.
Quando entrei para a faculdade, já lá vão três anos, deixei de escrever. De quando em quando, muito esporadicamente, lá ia escrevendo um texto ao outro e, mais recentemente, enviava à professora Isabel para que lesse. Talvez procurasse uma palavra de incentivo. Esta senhora acreditou sempre…
Criei este blog nesta última passagem de ano, com a ajuda do meu primo Marco. Era uma ideia que namorava há algum tempo, mas…
Acreditei, largos tempos, que escrevia para mim. Hoje não sei. Se ninguém me lesse, teria eu a coragem de me achar capaz? Hoje não sei. Preciso que me leiam.

Em que data exacta iniciou o blogue?

Como já referi, criei este blog na passagem de ano. Por isso, existem apenas dois posts de 2009.

Nomeie cinco seguidores leais.

A professora Isabel foi a primeira leitora deste blog, como não podia deixar de ser. Foi ela que trouxe até mim a Ibel, a minha fada boa, que eu acredito que me abraçou para a vida. Depois veio o AC. Se ele pudesse imaginar quantos sorrisos de contentamento as suas palavras cheias de ânimo e incentivo desenharam no meu rosto…
A Diana Cabral, com as suas palavras cheias de carinho... Lembro-me do caderninho de Fernando Pessoa que me ofereceste um dia para que eu escrevesse.
E a minha mana pequenina que, muito embora nem sempre perceba, nunca deixou de ler.
Mas não me esqueço das pessoas que me seguem em silêncio.
Às pessoas que chegaram mais recentemente, expresso o desejo que fiquem…

E pronto… É mais ou menos isto. Para terminar, e para vós, aqui fica uma mensagem que Saint-Exúpery…

Cada um que passa na nossa vida passa sozinho, pois cada pessoa é única, e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa na nossa vida passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa sós. Leva um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito; mas não há os que não levam nada. Há os que deixam muito; mas não há os que não deixam nada. Esta é a maior responsabilidade da nossa vida e a prova evidente de que as pessoas não se encontram ao acaso.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

I


Ia e vinha em vagas discretas, que o mar nesta terra é comedido. Estremecias quando uma onda mais atrevida te salpicava o corpo de frio, mas não arredavas pé, firme nesse teu propósito de criança.
O lugar onde as águas e a areia se abraçam. Aí estiveste por tempos que não sei definir, porque o mar se faz de eternidades e nós, humanos, de brevidades e instantes.
Uma criança, tu criança, esperando a onda que traz e leva, para novamente trazer e levar, num bailado de repetições aparentes.
Encontraste um pedaço de uma concha azul, belíssima, perdida num punhado de areia. Tão pequeno o pedaço, tão estilhaçada a concha, que só mesmo um olhar de criança poderia captar tal brilho entre os escolhos que nos varrem os pés à beira-mar.
Perguntaste-me se gostava e eu assenti, porque era, de facto, linda. A concha, mas, sobretudo tu, criança.
Disseste-me que, para mim, procurarias os outros pedacinhos e, no fim, juntá-los-íamos.
Desta praia onde sou estranha não vou guardar as conchas de linhas perfeitas. Guardarei, antes, essa concha azul que me ofereceste em pedaços e que eu reconstruí, inteira, no lugar de dentro.

Ele


Nessa tarde, a porta do pequeno apartamento onde vivias estava encostada. Que descuido!, lembro-me de ter pensado. Mas distracções ou desleixos desta natureza eram frequentes. Ainda hoje não sei do que tinhas medo. Capaz de, sozinha, percorreres, à noite, as ruas da cidade, mas chorando baixinho se a mão negra que só tu vias te fazia festas no rosto. Medos sem substância. Fantasmas. Memórias. Vivências. Projecções. Era esta a tua casa assombrada.
Bati e, como se ninguém respondesse, entrei. Uma tesoura de grandes pontas, negra dos muitos anos que teria, estava pousada sobre uma mesa e, espalhadas pelo chão, mechas desse cabelo de que tanto gostavas. Nenhum espelho.
Entraste na sala, vestindo as roupas velhas e roçadas com que gostavas de andar por casa. O teu cabelo, o cabelo que penteavas com tanto esmero, sempre direito, sempre correcto, era agora uma moldura desalinhada. Um corte tosco, descuidado. Uma massa revolta era o que agora te enquadrava o rosto.
Mas, mais do que tudo, impressionou-me esse teu sorriso de catraia, tão feliz, tão leve, tão genuíno.
Nesse momento, apaixonei-me por ti. Outra vez.

segunda-feira, 12 de julho de 2010


… Foi nessa altura que tropecei nesse teu choro baixinho. Estaquei e assim fiquei, por minutos fundos que nem horas. E fui um ladrão na noite, espiando das sombras essa tua alma desnudada. Choras baixinho, sabes? Com descrição. Com resguardo. Choras como quem desvia o olhar. Porque fazes das lágrimas o teu maior segredo?
Abri a porta desse teu quarto de bonecas e, com os olhos, pedi licença para entrar. O teu olhar feito mar resvalou sobre mim e o que vi foi um lampejo de contrariedade. Não vergonha, apenas contrariedade. Porque te surpreendi, não num momento de fraqueza, mas nessa suprema intimidade de seres.
Eu entrei e, uma vez mais, me senti intruso no teu mundo. O teu quarto parece perdido num tempo de fantasia e, nas paredes que te contêm, sinto o respirar do tanto que és.
Sentei-me com cuidado, consciente de que a rudeza podia calejar de mágoa o teu mundo de cristal. A tua voz falou. Pediste-me que, por essa noite, por uma noite, te guardasse o coração. Doeu-me a tua fragilidade e quis tanto, por uma noite que fosse, pegar em minhas mãos o chumbo que trazes em ti.
Ajoelhei-me junto da tua cama pequenina, afaguei-te o cabelo e limpei uma lágrima que te nascia no canto do olho. E admirei-me, sabes? Como pode uma lágrima, essa leve transparência, ser sinónimo de tanta dor?
Pediste-me que te lesse uma história. Eu peguei no livro que tinhas à cabeceira e li. Logo me arrependi. A história d’ O Monte dos Vendavais é sombria, linda, certamente, mas sombria e eu queria tocar-te de alegria. Devolvi o livro ao lugar que lhe destinaste. Tu, adivinhando-me os pensamentos e a intenção do gesto, sorriste com descrição e, como quem confidencia, falaste-me de Catherine e Heathcliff e concluíste dizendo que o amor mais nobre e puro pode nascer no coração mais rude e desgraçado.
Fiquei em silêncio, pegando a tua mão fria, até que acabaste por adormecer. E lembro-me de ter pensado, olhando o teu rosto adormecido, que a tua vida era como o céu nocturno: uma mescla de pequenos pontos brilhantes num manto de negritude.

domingo, 4 de julho de 2010


Agora que já deste a volta no mundo
Já sabes, não há mais longe nem mais fundo
Do que por dentro onde guardaste o que foi teu


Ao teu redor, Mafalda Veiga



quarta-feira, 30 de junho de 2010


Noite dentro, e eu sentada diante de uma folha de papel, branca das palavras que não escrevi.
Noite de Verão. Eu gosto das noites de Verão, gosto de ficar acordada por horas infindas, o sono pesando-me talvez sobre as pálpebras, mas eu resistindo sempre, pelo privilégio de espreitar um mundo adormecido. Pela janela aberta entra uma brisa suave que disfarça em marca de água o calor desaustinado que apertou durante o dia. A cortina ondula em meneios de mistério e eu finjo, só pelo gosto de criar fantasia, que os ruídos da noite são em verdade assobios das estrelas cimeiras.
Olho a folha ainda branca. Ainda não aprendi a lidar com elas, com as palavras, quero eu dizer. Sempre me parece que chegam contrariadas, como se não gostassem de mim e as arreliasse a minha insistência. E eu, que gosto tanto delas, arrelio-me de igual modo, porque creio vivamente que todos os grandes amores deviam ser correspondidos.
Às vezes desespero. Eu queria tanto e elas não vêm. Entre o ser e a vontade de ser há um fosso de frustração. Tantas palavras belas em viva roda pelo mundo e, em mim, essa cobiça, entremeada de tristeza, por aquilo que, talvez, nunca terei.
Tenho pena por não saber escrever sobre as coisas pequeninas. Gostava de saber descrever, em palavras simples e despojadas, tudo o que vejo à minha volta. Mas não… Talvez cisme demais. É o que o meu pai me vem dizendo, desde que me lembro de ser gente.
No outro dia, no telhado, enquanto comia cerejas, pus-me a pensar como escreveria eu esse momento.
É tão difícil escrever sentimentos. Ou sensações. Ou qualquer coisa. É tão difícil escrever.
Hoje, eu juro, só queria ser capaz de escrever um telhado e uma menina mulher sentada lá no alto, pescando cerejas, num desafio mudo ao mundo, esse senhor sério que olha com ar reprovador, porque esqueceu como é bom subir às árvores.

terça-feira, 22 de junho de 2010



No dia em que fizeste vinte e um anos, vieram as fadas e os duendes e, nessa língua que se escreve palavras magia, segredaram-te ao ouvido um desejo que no coração ficou.
No sono que dormias, cerraste os punhos com força, com uma gana desumana de agarrar esse pedaço de nuvem que te traziam como presente.
No torpor do encantamento, acordaste e olhaste as estrelas sorrindo, como quem pede à Fortuna complacência pela ânsia que não cala e persiste. Por um instante, foste um sonho sem freio e o olhar brilhou de chama renascida.
E leste, nessa verdade de ti, nessa verdade de seres, que a crença, essa divisa que trazes no peito, é, afinal, imorredoira.

quarta-feira, 16 de junho de 2010



Vês aquela casa, ali adiante?
Foi um dia minha. A minha casa de viver. Há anos que ninguém lá mora. Eu despedi-me dela e vim para aqui, para esta casa de meu irmão, no fundo da mesma rua. Às vezes espreitava-a, de longe, ou de perto, quando o passo trôpego e cansado consentia. Sempre o mesmo sorriso de casa minha e eu a iludir-me, forçando a crença, ou julgando deveras, que tudo é ainda o mesmo. Mas o tempo…
Hoje não tenho sequer a ilusão. Construirão uma outra casa no lugar da casa minha. Talvez preservem as paredes que me resguardaram do mundo, tudo o resto será destruído.
Sabes pequena, eu preocupo-me. Preocupo-me com as memórias. Para onde irão, agora que perderam o poiso?
Durante a manhã, os homens transportaram os caixotes repletos daquilo que é ainda meu. Vi de longe aquele espelho de prata, magnífico, e lembrei-me do dia em que nele me olhei nua e bela, apenas duas pérolas espreitando entre o cabelo revolto. Vês o meu cabelo? É branco de tempo e a pele, que foi seda e toque nas mãos de alguém, está gasta.
Hoje, a casa minha é um sorriso rasgado de destroços. Amanhã outra sorrirá no lugar da sua ruína. Dizem que as memórias nos sobrevivem, mas as minhas morreram antes de mim.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

No teu poema...


No teu poema
Existe um verso em branco e sem medida
Um corpo que respira, um céu aberto
Janela debruçada para a vida.
No teu poema
Existe a dor calada lá no fundo
O passo da coragem em casa escura
E aberta, uma varanda para o Mundo.

Existe a noite
O riso e a voz refeita à luz do dia
A festa da Senhora da Agonia
E o cansaço do corpo que adormece em cama fria.
Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva, a luta de quem cai ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
Existe o grito e o eco da metralha
A dor que sei de cor mas não recito
E os sonos inquietos de quem falha.
No teu poema
Existe um cantochão alentejano
A rua e o pregão de uma varina
E um barco assoprado a todo o pano.

Existe a noite
O canto em vozes juntas, vozes certas
Canção de uma só letra e um só destino a embarcar
O cais da nova nau das descobertas.
Existe um rio
A sina de quem nasce fraco, ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
Existe a esperança acesa atrás do muro
Existe tudo mais que ainda me escapa
E um verso em branco à espera... do futuro.

José Luís Tinoco