Innocence, Janet Treby
Tu que vives embalando sonhos no resguardo de um berço que deixa a realidade lá longe. És forasteira no mundo, pois que dos teus olhos se vê um lugar inventado. Ousa. Atreve-te a sentir a chuva mais perto. Que sabes tu da água escorrendo fria pelos lugares do corpo?
E ela assim fez. Assim se fez.
Caminhou descalça na noite que cobiça de longe, a branca camisa adejando-lhe ao pés, e deu-se à chuva como nunca se deu a ninguém, fazendo da água um amante perfeito.
As linhas de chuva oblíquas que lhe atravessavam o corpo, penetrando-a, eram dedos tacteando-lhe a pele numa selvajaria de sentidos ao rubro. E o ruído agreste era uma voz impudica que lhe gritava uma entrega e a fazia corar de pudor.
Esqueceu o espelho de latão onde namora o rosto e atreveu-se a olhar-se debruçada sobre as águas de um rio assolado pela chuva. Julgou que a água em desassossego, que está e já não está, porque se abraça constantemente em violência, era a imagem da sua alma despida, nua de confortos e falsas seguranças. Julgou que a turbulência que via era dela, era ela. Talvez seja. Talvez sejas.
No instante em que se rasgou o vestido, vieram lágrimas que a chuva bebeu. Na promiscuidade de duas águas que se beijam, ninguém viu que chorava.
Quando regressou ao berço, cobriu a nudez com um xaile de ouro. Olhou-se ao espelho como sempre fazia e viu a pupila, que é o negro dos olhos, crescer, como sombra que alastrasse no seu corpo. Para que nasçam sombras, pedaços brancos terão de morrer. E se quiseres pintar o negro de uma claridade nova, será que podes? Ou o branco que nasce das trevas ficará sempre sujo e maculado?
É mentira. Molhei-me de palavras e estou ainda sentada à janela, do lado de dentro de uma transparência sólida feita de vidro. Talvez não saibas, mas muros sem cor são também barreiras onde moram prisões. São assim algumas das minhas transparências. E por isso adio a coragem.
Amei ler-te neste texto em que no início parece haver dois narradores, mas que no último período se verifica que afinal só existe um -ou melhor dois Eus do mesmo narrador .
ResponderEliminardentro de nós existem prisões, barreiras que muitas vezes nos impedem de experimentar a coragem...e afinal nós somos tantos num só,
beijo, Elisabete.
Elisabete,
ResponderEliminarEstá a escrever, cada vez mais, com maior segurança, e isso é muito bom.
Que dizer do texto? Maravilhoso!
Beijo :)
elisabete,
ResponderEliminarpor onde andei ao longo deste tempo todo, numa blogosfera que nos conduz a canais tão óbvios quanto quase imperceptíveis?... e tu aqui tão próximo, sem que te visse... o que escreves recorta a fineza da voz como se os sons deslizassem sobre água, sobre seda, à espera do momento certo para desabrocharem em pérolas como "fazendo da água um amante perfeito" e "São assim algumas das minhas transparências. E por isso adio a coragem". e no corpo, mesmo que sem coragem, há ecos a anunciar os caminhos.
bravo!
um beijo!
regressei
ResponderEliminarao berço
ao xaile
e à coragem, adiada ou não
obrigada, Elisabete!
um abraço
manuela
E.A.
ResponderEliminarQue texto maravilhoso! Que sentimentos fortes transparecem das palavras escolhidas e colocadas no lugar e tempo certos!
Muitos parabéns. Este texto faz bem à alma.
Beijinhos
Caldeira
É tão «agressiva» de beleza esta escrita intimista que se desdobra em cada segmento de texto, que é necessário recuar e recuar, ler e desdobrar os olhos e o pensamento à procura dos vários sentidos que caracterizam os grandes textos.
ResponderEliminarE vê-se que é a própria narradora, qual Anteu, a procurar na terra da sua escrita os trilhos intrínsecos da descoberta do ser humano e da sua própria descoberta.
Minha querida, Elisá, que bom sentir esse pulsar na respiração das palavras!
Que delícia voltar e reencontrar um texto desse pelo caminho.
ResponderEliminarPalavras são só palavras, mas adquirem música quando escolhidas e casadas por afinidade.
Você tem a batuta. E rege sua orquestra com delicadeza ,talento e sensibilidade.
Beijos, Elisabete.
De te deitares com a chuva, acordaste prenhe de símbolos. Tuas palavras, filhas do encontro, tinham da água o D.N.A. de fluir. Minavam de teus dedos, cercavam-te em condição de ilha. Tu, a um só tempo, a que vertia e a que acumulava, na concavidade das mãos, goles de tempestade.
ResponderEliminarElisabete, que belíssimo texto, de imagens-tatuagens, que se colam ao leitor para nunca mais. Do dilatar as pupilas ao risco narcísico de curvar-nos sobre o próprio reflexo. Saiba que tocas, que marcas, que modificas as impressões dos que atravessam em mergulho apnéico tuas profundidades.
...e que os testes lhe corram bem!
ResponderEliminarum beijo
manuela
(depois de escrever, pega num carvão e desenha, um rápido desenho, cheio de gestos) Parabéns!
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