sábado, 27 de novembro de 2010




Usava o cabelo cortado rente e vestia-se com um desleixo que lhe assentava muito bem. As calças de ganga um pouco gastas. As botas castanhas que, nos passos de uma menina que vivia calcorreando ruas, há muito conheciam a cidade. Os camisolões que lhe disfarçavam o corpo magro. O impermeável de capuz vermelho que lhe permitia dispensar o guarda-chuva. A mala roçada que usava a tiracolo e onde guardava o caderno Moleskine e a velha máquina fotográfica, que sempre a acompanhavam.
Era bonita, muito embora olhasse a vaidade lá do alto, votando-a ao desprezo. Tinha olhos grandes no rosto miúdo, olhos que pareciam abertos de fome para o mundo. O corpo magro. As mãos frias, que o ditado diz que existem em troca de um coração quente.
Nos autocarros sentava-se nos bancos que ficavam de costas para o condutor e que a maioria das pessoas rejeitava, porque fomos feitos para nos sentarmos de frente. Às vezes, era a única pessoa no autocarro sentada nessa posição e podia olhar de frente todos os outros passageiros. E era disso que ela gostava. De escutar conversas alheias. De tropeçar em momentos. De sentir emoções no espelho dos rostos. De adivinhar vidas. De criar histórias. Às vezes, mendigava afectos, olhando estranhos fundo nos olhos e pedindo-lhes em silêncio que lhe lessem a alma desnuda. A maior parte das vezes, porém, amava a sua solidão.
Sentada num banco de jardim, ela não falava de si, mas escutava a vidas das pessoas que se sentavam ao seu lado. Às tantas, já confundia rostos e histórias. Velhinhas passavam-lhe para as mãos retratos a sépia do marido morto ou imagens de belas jovens encostadas ao capô do carro com a saia adejando ao vento e um sorriso pleno de futuro no rosto. Havia às vezes as lágrimas que ela recolhia na concha das mãos, quase como Blimunda, que recolhia as vontades que fariam voar um dia a passarola. E afinal, que são lágrimas, senão vontades desfeitas?
Vivia no sótão de um prédio antigo numa zona triste da cidade. Um espaço exíguo, um tanto atulhado. Um espaço cunhado de simplicidade e despojamento, a não ser aquela secretária colocada diante de uma janela. Uma secretária linda onde estava pousada uma máquina de escrever que adquirira numa loja de antiguidades quando se perdeu nas ruelas de uma cidade. Um mero adorno, porque ela escrevia à mão, com uma caneta Montblanc. Porque ela escrevia e era este o seu luxo, o seu capricho.
Às vezes, ficava muito triste, mas logo se lembrava que tinha as palavras. Sentava-se à secretária e, esquecida dos prédios cinzentos que adornavam a paisagem, escrevia. Gostava de pensar que a sua janela tinha vista para a Lua. Essa Lua que talvez um dia tivesse nos braços.

11 comentários:

  1. E.A.
    Um belo texto e uma extraordinária história de vida.
    Uma narrativa escorreita cheia de significados e de significantes.
    Um alimento para o pensamento e para o sentimento.
    Espero que a menina bonita, mesmo que magra, possa atingir e agarrar, com as duas mãos e com todo o seu ser, a Lua que almeja.
    Beijinhos e parabéns.
    Caldeira

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  2. Zé,
    A menina da história agradece e eu também.
    Um beijinho

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  3. Elisabete,
    Num tempo de correrias e equivocados cenários, em que os comportamentos da multidão são facilmente previsíveis e manipuláveis, abrir os olhos para o mundo e querer agarrar o seu pulsar, o seu respirar, é condição quase exclusiva de poetas e artistas.
    Para mim é muito claro de que ainda haveremos de ouvir falar muito da menina magra de capuz vermelho, que traz sempre na mala um caderno e uma máquina fotográfica. Não que ela precisasse, que os seus olhos grandes tudo devem absorver, mas há adereços que já fazem parte de nós, são companhia incondicional.
    Elisabete, e a Lua ali tão perto...!

    Beijo :)

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  4. AC,
    Não sei já como agradecer as palavras que me plantam um sorriso de contentamento no rosto. Obrigada vai parecendo uma palavra pequenina...
    Ainda bem que veio.
    Um beijinho

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  5. "Essa Lua que talvez um dia tivesse nos braços."
    Começo pelo fim do seu texto... as palavras sonham no colo dessa lua onde viajam para de dia serem iluminadas pelo sol; nessa lua nascem assim histórias que nos são oferecidas e que nos fazem olhar de frente os outros e a nós mesmos...
    A sua janela tem mesmo vista para o mundo!

    Beijinho

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  6. Minha querida amiga... vc é magnífica! E que saudade eu estava de ler seus textos, suas palavras que mais parecem ler a minha alma. Tudo que vc escreve me toca tão fundo a alma... eu adoro!

    "E era disso que ela gostava. De escutar conversas alheias. De tropeçar em momentos. De sentir emoções no espelho dos rostos. De adivinhar vidas. De criar histórias. Às vezes, mendigava afectos, olhando estranhos fundo nos olhos e pedindo-lhes em silêncio que lhe lessem a alma desnuda. A maior parte das vezes, porém, amava a sua solidão."

    Senti aqui que isso foi pra mim, de tanto que se parece comigo! :) ADOREI!

    Beijos

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  7. JB,
    A Lua é sua também... Um beijinho

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  8. Patrícia,
    Fico muito feliz que tenha gostado. Espero que fique. Um beijinho grande

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  9. Que menina linda, que vive aos moldes de um outro tempo. Um tempo mais bonito, quando a vida não corria célere, e quando os ponteiros não devoravam os segundos.

    É tão bonita a forma como você vai tecendo a teia do texto. Ao ler você, me sinto assim, bem pequenininha.

    Beijos, Ana

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  10. Ana,
    O tempo da escrita é sempre um tempo suspenso.
    Um obrigada muito sincero

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  11. O narradora/autor(embora não devam ser confundidos os conceitos) sempre a insinuar-se nas personagens que cria. Pedaços de uma Elisá na menina que segura palavras.
    Segura palavras,"pequena"
    que o mundo as aguarda
    para olhos que lêem palavras
    como quem olha o sol em todas as esquinas.
    Segura, palavras,
    insegura menina
    do autocarro com gente
    que olhas de frente...

    Como enviar este abraço?

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