terça-feira, 3 de agosto de 2010


Klimt

A primeira vez que vieste até mim. Eu lembro-me. A cadeira onde me encontro sentada é a mesma. Nesta casa muito pouco mudou. Já era velha nessa altura, hoje não sei que idade tenho. Sou velha, muito velha, demasiado velha. Tão velha, que às vezes penso que a morte me esqueceu. Nasci para ser velha. Fui criança, fui moça, fui mulher criada, mas a idade é o vestido que melhor me cai.
Dizem que enlouqueci. Não é verdade. Se existe loucura, é a de sempre. Mas um dia dei por mim revivendo as minhas memórias em voz alta. Podia pensar, falar em silêncio, mas a verdade é que gosto de ouvir a minha voz. Eles escutam, orelha sempre arrebitada para o que lhes é alheio, e por aí se comenta. Talvez não haja nisso maldade, talvez seja um entretém que lhes corta a monotonia dos dias. No fundo, todos precisamos dos pequenos escândalos e burburinhos. Não é por mal, é só do jeito que somos.
Hoje julgam-me louca, mas dias houve em que me tinham muito respeito. Cria-se que tinha um dom. Nasci cega em dia aziago. Sexta-feira, décimo terceiro dia do mês primeiro do ano que já não sei. Pura crendice, que também nisto se enganaram. Mas precisamos de pilares de magia em nossas vidas. É do jeito que somos. Não, não tinha o dom, pelo menos não esse. O meu dom era muito humano, muito terreno. Sempre fui muito perceptiva, muito intuitiva, muito sensitiva no que toca à nossa humanidade. Talvez porque nunca olhei, vi mais do que todos eles. Leio a alma na voz dos que me falam e raras vezes me engano. Dom ou não, foi o que fiz. Ler pessoas, conhecer humanidades.
No dia em que te conheci, a porta rangeu de velha e no soalho cansado soaram dois ou três passitos curiosos. Tão discretos, que eu me atreveria a dizer que estavas descalça. Um dia, já crescida, disseste-me que era nos pés que sentias a liberdade do corpo, por isso digo que sim, talvez os trouxesses vestidos dessa liberdade. Dois ou três passitos, depois nada. Longo tempo passou. Eu nada disse. Tu olhavas certamente o bricabraque desta casa orgulhosa onde nasci e, a dada altura, o teu olhar terá encontrado o lugar vazio do meu. E então falaste.
- Senhora…
- Aproxima-te pequena.
E tu vieste, sem medo ou hesitação. Peguei-te no rosto e senti a textura do teu cabelo crespo e em desalinho.
- És muito bonita.
- Como pode saber?
Não havia insolência, apenas curiosidade.
- Pela voz, pela tua voz.

8 comentários:

  1. Que maravilha de texto. É como se seguisse o desenrolar de um filme.Imaginei os passos, os gestos, as expressões dos rostos. Construi as personagens na minha mente e espero o rematar da história.
    Um bjinho.

    ResponderEliminar
  2. Um dia quando for "velha, muito velha, demasiado velha" vou recordar este texto. Nesse dia, se ele chegar, vou querer ter a companhia das palavras. Que Deus me dê a graça de ter quem as cante para mim, pois nesse dia os meus olhos serão tão frageis como os que escreves e o meu dom não me permitirá ler a humanidade.

    Com muito carinho
    Diana C*

    ResponderEliminar
  3. "Leio a alma na voz dos que me falam..."
    E eu gosto de "ler" a alma nas palavras dos que as escrevem (e tenho vindo a descobrir algumas pessoas que assim fazem, e ainda bem!:).
    O seu texto é de uma gentileza e inocência que dá gosto vivê-lo e senti-lo como se se ouvisse essa voz, sem olhar a sua personagem.
    Lindíssimo texto!
    Parabéns!

    ResponderEliminar
  4. Elisabete

    Sempre essa maturidade que me fascina. É extraordinário como consegue construir a personagem de uma pessoa de idade que, sendo cega,vê pela voz.Comovi-me muito porque a minha avó era também cega e bordava maravilhosamente, com mãos que teciam mistérios. Apalpava o rosto da minha mãe e dizia-lhe: como ficaste tão bonita, minha filha e com umas feições tão perfeitas!
    Essa atenção aos outros, do ponto de vista de um(a)narador(a)omnisciente é qualquer coisa que já distingue o seu estilo.AVANCE!!!

    ResponderEliminar
  5. Avance mesmo que a minha mana Ibel sabe do que fala e, só fale assim do verdadeiro mérito.

    ResponderEliminar
  6. À medida que lemos sentimo-nos mergulhar na "visão" da personagem, apurada no silêncio e tecida de intuição e sensibilidade. Ficamos mais atentos à linguagem das coisas, às imperfeições humanas. Ficamos mais nós.
    Isto é talento, Elisabete!

    Beijo

    (Regressei ontem de férias. Ainda bem que encontro por aqui novidades)

    ResponderEliminar
  7. Uau:)Muito, muito e muito bonito!

    Sónia

    ResponderEliminar