segunda-feira, 24 de maio de 2010

Coimbra. “Como não podia deixar de ser”


“Coimbra, como não podia deixar de ser”. Foi Miguel Torga quem o disse. Gostava de ter sido eu a dizê-lo, pois, à minha maneira desajeitada, também eu o sinto.
Tantos escreveram sobre ti. Palavras lindas, como só tu serias capaz de inspirar… És bem-amada. Têm-to dito.
Hoje, também eu gostaria de escrever sobre a minha cidade, saudar-te neste pedaço de papel. E contudo, a tarefa apresenta-se-me dantesca, impossível. Peço-te que me deixes prosseguir, na certeza de que, se hoje te ofereço um mero rascunho, chegará o dia em que te prestarei a justa e merecida homenagem.
Recuo alguns meses, largos meses, devo dizer. Parece que foi há tão pouco, mas já passou mais de um ano. Às vezes, não posso deixar de pensar que o tempo é manifestamente batoteiro. Tinha terminado o secundário e, uma vez decidido o curso, faltava a cidade. Não creio que a decisão tenha sido minha. Se acreditasse no destino, diria que tudo estava já escrito. Ainda assim, quis ter a certeza. Marquei encontro contigo. Nesse dia, piscaste-me o olho, travessa, e eu sorri. Tinha chegado a casa.
Sobre esta cidade, alguém um dia escreveu: “Coimbra não se chama Coimbra. Tem o longo nome do local onde nasci. Não onde as dores da minha mãe me fizeram urgência, mas onde eu próprio me gerei para depois me dar à luz”. Estranhamente, a empatia nasce também entre pessoas e lugares e também eu escolhi nascer em ti, para ti.
Há entre mim e a cidade uma certa afinidade de temperamento. Talvez seja uma grande presunção pensá-lo e um pecado ainda maior escrevê-lo. Em minha defesa, devo acrescentar que é da minha cidade que falo, essa que se molda e reconstrói para cada um de nós…
Assim, quando me invade essa alegria tola e infantil que me faz abraçar o mundo, sou Coimbra ao Sol; quando o meu coração se remorde em nostalgias, sou Coimbra fustigada por essa chuva miudinha, tão doce e triste; quando a minha alma é um poço sem fundo, onde grassam o desespero e a solidão, sou Coimbra trajando a noite e os séculos.
Talvez saiba muito pouco sobre esta cidade. Há ignorância no meu olhar e reconhecê-lo é também uma forma de redenção. Mas há também inocência, a inocência de uma entrega incondicional. Quem ama, não sabe o porquê.
Cidade do amor, guardarás, pelos séculos e séculos que hão-de vir, os sussurros e os brados desse rei louco que fez do desejo a sua divisa. “Désir. À mon Seul désir.” Eras tu, Inês. Só tu. É preciso ser-se louco para amar. É sim.
E entre devaneios, o dia se fez noite. Indolentemente, de mansinho, a cidade cobriu-se de um manto negro pintalgado de estrelas. É bonita, a noite. Da cidade já o tinha dito. A combinação é dolorosa. E por isso choro. Com as lágrimas, escorre-se o acessório, até ficar apenas o essencial, a alma a nu, frágil e desprotegida.
Não me inquieto. Hoje estou em paz. Sei que acabarei por adormecer, enroscada no teu abraço.

Março 2009

5 comentários:

  1. Pobre Viseu!! Acabou de ser atirada para a lama! Foi renegada. Deixou de ser a tua cidade...

    snif... snif... (isto é viseu a chorar, caso ñ se perceba).

    está mt giro, o texto (só falta conheceres bem a queima, na parte da noite)

    bjs

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  2. Coimbra, por tantos cantada, não se cansa de o ser. Ainda bem que assim é, que continua a ser espaço de construção, de afectos, de realização e, porque não, ponto de partida para o mundo.
    Muito bem escrito!

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  3. Nem imagina o que senti ao ler o texto. Retirei do meu blog um poema escrito há dois anos sobre a cidade da minha paixão.

    APELO

    Vem se puderes
    Trazer um cheirinho
    Do Choupal até à Lapa
    Minha Coimbra menina
    Saudosa no adeus
    E na canção.
    E traz também
    O passado nesse fado
    Manhã de mim
    Ardor de flor
    Na cor e dor.
    Vem e traz a guitarra
    Do penedo enamorada
    E os beijos em segredo
    E o Mondego
    E a loucura deslumbrada.
    Vem e não demores
    Que a pressa é já
    A de ser ontem
    Luz macia
    Sol e dardo
    Bote e água
    Eu Maria.

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  4. Oh minha Eli, admiro tanto esse sentimento. Coimbra podia ter o teu nome, e seriam ainda mais justas cada uma dessas palavras.

    Eu, ao contrário de ti, não sou coimbra na sua verdadeira essência... Sou um ser dividido. Mas fossem as pontes que tanto amo o caminho entre o Pilar e o Choupal e seria completa ao caminhar nessa estrada.

    Coimbra dá-me a confusão de uma estranha saudade futura, aquela que terei todos os dias da minha vida por cada migalha de tempo que lá passei. Não é a primeira, mas está de mãos dadas com a cidade que ainda me enche a alma e faz o meu coração bater mais forte todas as vezes que sinto a brisa do ar que a toca.

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  5. Esse elo que tens por Coimbra, um dia irá estender-se a outros locais e dormirás em paz, enroscada no abraço do mundo.
    Um bjinho e outro para a Letícia. Que saudades dos anos bons...é como dizes: "o tempo é batoteiro"

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