domingo, 6 de fevereiro de 2011


Está frio e abotoar o casaco é um gesto inútil. A respiração condensa-se numa nuvem branca que mais parece o fumo do cigarro que nunca fumei. Movo as pernas e a pomba, que me tomou como estátua sem vida, bate as asas esbaforida, num arrulho de indignação.
Não gosto da rodoviária. Parece ainda mais suja e triste no Inverno. E aqui espero pelo autocarro que há-de sempre tardar mais um pouco.
Uma senhora aproxima-se e pede que lhe indique a casa de banho. Daí a instantes, uma outra senhora se me dirige e pede a mesma indicação. Perguntassem-me outros caminhos ou direcções e talvez não soubesse responder.
Todas as semanas, neste terminal, uma cigana coxa se passeia entre os que esperam oferecendo estampas de santos em troca de uma moeda. As pessoas recusam e viram costas, ela fala entre os dentes, rogando pragas.
Quando me levanto, uma rapariga da minha idade passa por mim. Investe contra mim com um olhar frio. Mulheres que se cruzam e se olham com animosidade.
No autocarro, sentar-se-á uma velhinha a meu lado e contar-me-á a história da sua vida. Não lhe direi que já escutei uma história igual e deixarei que o coração se me encha de ternura. Uma vez mais.
Afinal, não se sentou ninguém a meu lado. Uma senhora olhou-me com estranheza quando me sentei e comecei a rascunhar isto que agora lês. Sorri-lhe e ela pareceu sossegar, perdoando-me a discreta excentricidade.
Vi dois cavalos, um campo de saramagos e uma ponte de pedra, mas hoje, nada parece assanhar a minha sensibilidade embotada.
Escrevo de rajada sobre coisa nenhuma. Uma porção de tempo sem ressonância no que sou ou construo. Quantos pedaços de coisa nenhuma numa vida.
Quando chegar à outra cidade, estará a chover. Não sabia, nunca ouço a meteorologia.

4 comentários:

  1. Entranheza foi o que senti quando vi a nova cara do blog.Pensava que me tinha enganado ou que a "minha menina" teria fugido.
    Bastou-me ler a primeira linha para ter a certeza que estava na casa certa.
    A forma como descreve o que viu ou inventou são imagens lúgubres do nosso quotidiano indiferente ao próximo, tal o vazio em que estamos a fundear.
    É extraordinária a visão realista que uma jovem tem da vida. E como esses olhos estão acordados, Elisá!
    Gostei muito deste naco de prosa poética:
    "Escrevo de rajada sobre coisa nenhuma. Uma porção de tempo sem ressonância no que sou ou construo. Quantos pedaços de coisa nenhuma numa vida.
    Quando chegar à outra cidade, estará a chover. Não sabia, nunca ouço a meteorologia."
    Venha daí um abraço!

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  2. Que texto inquietante. Você diz não saber o mote da história, se é que há história, mas a matéria trata, pelo menos na minha leitura das entrelinhas, de envelhecer.

    Isso que se nos acontece diariamente, e nem nos damos conta. Especialmente marcante a frase da narradora que não se importa com a meteorologia, antecipando ao leitor que não dá muita conta ao futuro, que só chega depois de passarmos, sempre.

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  3. Elisabete,
    Há coisas que não carecem explicação, caso contrário cai-se naquele discurso do género "quando era pequeno frequentava a Biblioteca Itinerante...". As coisas são como são, e gosto de pensar que escrever bem é um dom. É o seu caso, estou convencido que escrever bem está-lhe no ADN. E muito feliz me sinto por poder fruir as suas palavras.
    Noutra altura falarei da sua sensibilidade aos pequenos gestos, às pequenas coisas...

    Beijo :)

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  4. Conheço esse rodoviária lúgubre, essa outra cidade onde estará a chover e conheço essa menina que escreve de rajada estas palavras que lemos. Que abençoada sou por te conhecer!
    Bjinhos

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