quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

VIII


A Lady playing the piano
Carl Vilhelm Holsoe


(Aquela senhora na paragem de autocarro. Perguntaste-me o que tinha ela da viscondessa. O cabelo, respondi, duvidosa. Mas não, o cabelo da viscondessa é mais branco e mais comprido, embora raramente lho visto solto, ela usava-o preso num entrançado bonito.
Perguntaste-me se a concebia numa paragem, à espera de um autocarro. Perguntaste-me se o pai da senhora era homem que fumasse cigarrilhas. E eu não soube que responder, que nunca tinha pensado nisso.
Como explicar-te que não sei, que a personagem não é minha e que sou narradora de uma história que desconheço e que vou tecendo com palavras rotas de sentido?)

Um dia não me apeteceu ler, nem sequer aqueles livros que às vezes folheava distraidamente e que se compunham de gravuras de cidades que eu visitaria um dia, porque tinha decidido que veria o mundo inteiro, eu, que tinha o futuro como o meu mais precioso haver. E a distância? A distância era tão pequena, pois se o sonho dava passadas tão largas que eu mal o conseguia acompanhar.
Mas não me apeteceu ler e fui pôr-me à janela, olhando o fora. Estava de costas para a sala e foi assim que a música me surpreendeu. Não me voltei até ao momento em que se suspendeu, tão repentinamente como tinha começado. Foi esta a única vez que ouvi a senhora tocar. O bonito piano de cauda não era, afinal, um mero adorno, era um sonho insuspeitado, que ela assim me revelava. Talvez gostasse de tocar mais vezes, mas as mãos tremiam-lhe e certamente lhe doía escutar as notas vacilantes de um sonho envelhecido.
Não foi alegria. Não foi tristeza. Foi como se a alma tivesse crescido mais um palmo e não me coubesse no corpo. E a alma crescia e crescia e crescia e, a dada altura, já os olhos choravam a alma que não cabia.
Dedos de pianista ou cirurgiã, disse-me um dia a velha senhora. Mas eu já sabia que a música entraria em mim, mas nunca de lá sairia pelos dedos esguios; só pelos olhos, quando vertesse lágrimas, como quem chora canções.

9 comentários:

  1. E.A.
    Mais uma linda história de sensibilidade. Quando se sente "por dentro" a alma cresce, cresce e parece sair pela boca. Outras vezes são os olhos que mostram esse estado de alma.
    Muito bonito.
    Beijinho
    Caldeira

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  2. "Como explicar-te que não sei, que a personagem não é minha e que sou narradora de uma história que desconheço e que vou tecendo com palavras rotas de sentido?"

    A narradora pode não ter traçado, previamente, um caminho mas as palavras traçam sozinhas, quantas vezes, o seu próprio caminho, como se tivessem vontade própria e soubessem imprimi-la à revelia da mão que escreve.

    Lindo!

    Um beijo

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  3. A viscondessa, o despertar para outros mundos...
    No entanto, um mundo que se adivinha que a magoou, que a induziu ao recolhimento. Não haverá neste texto um "comigo será diferente"?
    A escrita flui tão bem consigo, Elisabete!

    Beijo :)

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  4. Olá amiguinha!
    Gostei da sua postagem...mais uma fonte de cultura que descobri! penso que é a primeira vez que cá venho, vou seguir o seu blogue, gostei. Siga os meus também!

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    Um grande abração e até sempre

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  5. Elisabete

    Tem parecido que ando estado tão distante, não é?
    É só ausência de palavras. Os olhos nunca deixam de ler...
    O discuso parentético deixou-me extasiada.Nele, a personagem denuncia a narradora e o acto da escrita,como algo que parece ser, mas não é furtuito. Na realidade, se a escrita parece fluir espontaneamente, há a intromissão da inteligência na elaboração da estória urdida ao sabor da inovação e do fingimento. Fascinei-me!!!
    Que rumo vai dar à personagem neste livro que está a tecer?
    Deixe-se ir assim e explore esse piano. Estou a adorar este romance de personagem, Elisá!
    Beijinhos,esperança da literatura.;))

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  6. Uma cumplicidade entre o piano e a narradora. As palavras tocam em uníssono com as notas que soam dentro de nós e que escutamos numa melodia que nos passeia...
    Depressa somos "engolidos" na tela que cria ao longo da sua personagem! Delicioso de ler, Elisabete!

    Beijinho

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  7. Menina, que texto magnífico! Emocionou-me! :)
    Quanto sentimento! Quanta ternura está contida nessas palavras! Adorei! Parabéns!

    Quero aproveitar e desejar a vc, independente de creças, um Feliz Natal repleto de paz e alegria junto aos seus. :)

    Beijos, querida.

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  8. Li com calma, atenção... Li e reli... E depois de tanto tentar um comentário à altura... só consegui que saísse assim.
    Já te disse isto pessoalmente mas quero que seja pública a minha adoração pelos teus textos... Leio o suficiente para estar acima dos que não leêm, e ser bem inferior a ti, mas a cultura que até hoje adquiri nesta área tu bem a conheces, e tira destas palavras o sentido que desejares... Troco qualquer um dos livros que hoje tenho na cabeceira pelo continuar da tua história... Eu sei que este coração de amiga talvez fale mais alto que a consciência... Mas tu bem sabes como são profundos os meus sentimentos (Bem ao contrário da minha personagem nas aulas de psiquiatria).

    Oh Eli como admiro os teus textos, como sou afortunada com a tua amizade.

    Um grande beijinho

    Diana C*


    (sabes aquela capela na praia que aparece com a musica da Mafalda veiga do post anterior? É a capela do Senhor da Pedra junto à praia de francelos, e já fui lá tão feliz, e torno me uma pessoa bem mais leve de todas as vezes que lá vou atirar lágrimas ao mar)

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