quarta-feira, 22 de setembro de 2010


Klimt


A menina nasceu num dia medonho, de chuva e vendaval. Gostaria de dizer-lhes que, à hora da sua vinda, os céus se abriram num interlúdio de luz, mas assim não foi, e os céus permaneceram mudos e indiferentes à sua chegada. A menina nasceu vestida de branco e trouxe o seu nome consigo.
- Sê bem-vinda, Clara, minha bem-amada.
Uma voz envelhecida adorna de magia o nascimento de uma criança entre tantas, num dia perfeitamente vulgar, no hospital da cidade. Clara é a sua neta e a avó sabe que a magia não tem forçosamente de existir, pode inventar-se.
A menina ouve com olhos abertos de espanto, o rosto iluminado pelas chamas bruxuleantes nascidas de meia dúzia de toros assentes na lareira de mármore. A menina ouve e parece não entender que a Clara de que falam é ela própria, reflectida nos olhos meigos e embaciados da anciã. E dá por si a desejar que o seu nome soasse exactamente assim, um sussurro de magia lançado ao vento.
Chamava-se Branca de Neve, porque era de alabastro a sua pele, de azeviche o seu cabelo e os lábios eram duas pétalas da rosa vermelha mais fresca e bela. Como pérolas de sangue em neve branca e imaculada.
- Oh Clara, teria com certeza o teu rosto!
Era mentira. O seu cabelo era escuro, mas decididamente castanho, a pele não era branca, tinha a cor da pele ora essa!, e os lábios eram rosados e não vermelhos. Hoje sabe que é o amor que nos adorna as feições aos olhos alheios. Teria preferido ser a Bela, com a sua devoção pelos livros, ou mesmo a Cinderela, mas talvez os sapatos de verniz preto que usava com vestidos de veludo não pudessem substituir os outros, de cristal. Sapatos de cristal! Talvez não lhe servissem de muito no seu dia-a-dia de criança, mas podia ser que o príncipe não se importasse de dançar a valsa da meia-noite com uma menina descalça, que subia às árvores e esfolava os joelhos.
Tem saudades da avó, de passar as mãos sobre o seu rosto enrugado, dos olhos de um azul líquido, como dois berlindes.
Lembra-se das noites em que se sentava sobre a cama branca, diante de um grande espelho e a avó lhe penteava o longo cabelo. Não há ternura maior do que essa. Vestia uma camisa de noite, branca e comprida e olhava as bonecas de beleza irrepreensível e pele de porcelana, frágil, muito direitas no seu suporte. E quando se deitava na cama branca, ficava por tempos infindos olhando o tecto à espera que chegassem. E levantava-se e abria a janela, para que pudessem entrar. Como se o menino que viria voando da Terra do Nunca ou o coelho que a conduziria ao País das Maravilhas, entre tantos absurdos de magia, tivessem alguma dificuldade em abrir uma janela. Enfim… Acabava por adormecer de cansaço, a janela aberta para a noite e um pensamento martelando-lhe a ideia… talvez se se chamasse antes Alice…
Hoje, tantos anos volvidos, penteia distraidamente o cabelo, mas a ternura do gesto está nas mãos que são de outro alguém e não suas. E sente uma estocada de dor porque sabe que já não pode acreditar.

7 comentários:

  1. Texto muito bem construído. Uma história ternurenta e, ao mesmo tempo, dolorosa de saudade.
    Uma frase lapidar: "Hoje sabe que é o amor que nos adorna as feições aos olhos alheios".
    Adorei. Parabéns pela sensibilidade e pela forma como no-la transmite.
    Beijinho.
    Caldeira

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  2. Terei que estudar este texto com muita atenção.A clara...a alice...ou a elisá?
    Voltarei.
    Até lá, um grande beijo.Vou ver se escrevo uma carta de amor...

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  3. Uma perfeita delícia esta narrativa. E acreditar é algo sem tempo...

    L.B.

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  4. Uma história de ternura na conjugação de diferentes leituras de clássicos infantis e não só.
    Amanhã vamos calçar as sapatilhas, percorrer caminhos de eiras e espigueiros?
    Bjinhos.

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  5. "E sente uma estocada de dor porque sabe que já não pode acreditar."

    Chega sempre a altura em que temos que partir, de deixar para trás tudo o que até ali fora o alicerce do nosso mundo. O desejo de nos fazermos à estrada é forte, mas há algo que nos faz olhar para trás, de remexer mais uma vez nas nossas lembranças. Mas não há volta a dar-lhe, temos mesmo que seguir em frente.
    E é assim que eu vejo este magnífico texto: a consciência da despedida dum tempo maravilhoso, de encantos várias, a consciência da partida.
    Bons rumos, Elisabete!

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  6. Ao ler o seu texto, todos os sentidos se aprumaram na procura das variadas sensações que povoam a sua história. Carregadas de uma belíssima carga emotiva, surgem num crescendo que culmina na necessária tomada de consciência (ainda que tão marcada pela saudade de outros tempos)de que há deliciosas perdas na vida que nos marcam eternamente, sendo essencial continuar a procurar novas sensações, acreditando sempre.

    Parabéns pela forma como escreve!

    Beijinhos

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  7. A forma como vasculha o inconsciente é marcante na sua escrita. Interessante é a forma como se projecta a narradora nos mundos que cria.Esta Clara, de nome e alma luminosos,trouxe-me a "Casa dos Espíritos".Há algo de misterioso na sua prosa poética;há o passado colado à memória e a saudade dele;há a preocupação de gravar de algo que é essencial-os afectos eternos,as recordações embaladoras na hora de dormir,a ternura imaculada de uma avó que penteia os cabelos com pente de ouro, porque dele é feito o seu coração.

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