quarta-feira, 1 de setembro de 2010


A chuva lá fora parece anunciar o fim do Verão. Já o vinha pressentindo há dias, na calma triste de um fim de tarde à janela. Dia estranho o de hoje, nas cores, nos sons, nos cheiros. Sentes o cheiro da chuva? Sentes-lhe o gosto na tua boca que se abre em oferenda perante os céus? Sentes o toque frio dos seus dedos de água na intimidade da tua pele? Calou-se por ora. Mas sei, com a ousadia de quem se deita a adivinhar, que mais tarde não deixará de vir. Porque hoje, quando a cabeça pousar sobre o travesseiro e o corpo se moldar ao calor morno da coberta, hei-de, por força da minha vontade, adormecer embalada nessa toada.
Há duas noites que as espero e elas não vêm. Pesou-me a ausência, sempre me pesa. Comprei um novo caderno, embora o outro tenha ainda tantas folhas em branco. Sabes que durmo com ele a meu lado para escrever as palavras que me visitam em sonhos? Este querer não está certo, não em mim. Que tenho eu, senão a fria lucidez de saber que existem mundos de oiro para lá do meu? De entre tantas, porque não hão-de ser minhas as mãos que se aconchegam no calor dessa chama luminária? Jugo ou bênção, porque não nasci eu sob essa luz?
O solitário a meu lado está vazio. Hoje não há flor que lhe adorne a solidão. Talvez amanhã me lembre de colher uma flor com pétalas de chuva do jardim de minha mãe. Farei por não me esquecer.
O som do tráfego lá fora já não o oiço, engolido por esse silêncio corpóreo que me envolve como a mantilha que me cobre os ombros nus numa noite inusitadamente fria de Verão.
Com o matraquear da chuva, chegaram enfim. Não são minhas. Nunca serão. Mas cada pedaço de chuva contém uma palavra emprestada que eu recolho em minhas mãos com a avidez dos que têm sede.

5 comentários:

  1. E, quando menos se espera, as folhas do caderno vão perdendo a alvura, com as palavras, até aí a fruir a malandrice do jogo das escondidas, a deliciarem-se, desta vez, com as delícias da inspiração e da partilha...
    Ainda bem que choveu, Elisabete! :)

    Beijo :)

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  2. Que maravilhosa descrição de um fim de tarde de Verão com princípio de chuva de Outono. E o que parece saudade e solidão não será mais do que o (re)nascer da esperança de dias mais azuis e esplendorosos.
    As palavras ditas, lidas e relidas. Articuladas e encadeadas. Buriladas e adaptadas são a melhor forma de sentir e partilhar emoções. E a Elisabete faz tudo isso com mestria e muito talento.
    Beijo
    Caldeira

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  3. A chuva, o mar, o sol, tudo serve para escreveres textos que me prendem nos fios das palavras. Texto que emociona. Aconselho-te a leitura do livro: "A louca da casa" de Rosa Montero. Depois falamos sobre ele. :) bjinhos.

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  4. Com todo o carinho e ternura, por esta chuva e pela crença na esperança, ainda que ténue, de "de colher uma flor com pétalas de chuva"no melhor dos jardins.A sua mãe gostará. Ou serei eu que recolho neste "pedaço de chuva"cada palavra que escreveu?
    Abraço enorme, minha querida Elisá.

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  5. Eli mais um texto lindo.
    E acho que escolhi o dia perfeito para o reler com mais atenção e deixar o meu beijinho. Está a chover lá fora! E neste momento estou a olhar as minhas pontes... Vou a caminho de Coimbra no comboio da manhã!

    Para a semana lá nos encontramos!

    Um grande beijinho*
    Diana C

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