sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.
Vasco Gato



segunda-feira, 27 de dezembro de 2010


Dentro, onde ela está, há a janela recortada contra o escuro e é essa a noite. Mas fora é noite também. Noite deles, vagabundos, viciados, poetas malditos. Noite, correndo livre, dispersando-se por ruas e becos, aspergindo-se sobre os pobres sem rosto que vestem de negro e espreitam das sombras. Mas dentro é noite também. Noite refém, correndo em círculos, mas noite também. Diferente, mas noite.
Há dentro o candeeiro e a luz amarela, morna, tingida. Luz baça, que a luz muito branca fere como ácido. Há sombras que se projectam nas paredes. A sombra mais nítida é o desenho do seu corpo decalcado na parede. Deitada, volta-se para a parede e é como se olhasse a sua sombra nos olhos. Mas a sombra não tem olhos, é apenas o contorno dos vales e fundos do seu corpo. A curva da fronte, as pestanas, a linha das maçãs do rosto que se movimenta se ela forçar um sorriso, o contorno dos lábios, a depressão do pescoço e os ombros que respiram e fazem desta uma sombra viva, uma sombra que ri. O traço continua-se ondulante, corpo deformado pelas cobertas que aquecem e encobrem.
Se desligar a luz, a sombra morre. Morrem as cores, morrem as formas. Abre e fecha os olhos e a escuridão é quase a mesma. Não há hoje lua sinaleira que suavize o escuro, essa mancha de negro que os olhos enxergam porque nada enxergam.
Vai tenteando o escuro e liga de novo o interruptor. Da lâmpada nasce a luz. Nesse momento, decide que há-de adormecer sem querer, assim como quem se distrai e pronto. E a luz acesa há-de ser metade culpa, metade esquecimento.
A luz fere de morte o negro, mas não o silêncio. Silêncio. Quanto silêncio. Silêncio tão calado que grita e lhe zumbe aos ouvidos como um peso. Silêncio. Tanto silêncio. Ouve a pele deslizando sobre a pele, é o seu corpo falando baixinho. A madeira da cama range, dedo em riste acusando o corpo inquieto, desassossegado.
Noite é o escuro, o naco de silêncio e a solidão. Mas é isto a solidão? Aqui se veste o segredo e a intimidade, às vezes a dor do abraço ausente. Mas sempre a certeza, quando vem a solidão mais fria, está, tantas e tantas vezes, alguém sentado a seu lado.

- O que se consegue quando se fica feliz?, a sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.
- Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
- Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? - repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
- Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
- Ser feliz é para se conseguir o quê?
Clarice Lispector

Beijo

Não posso deixar que te leve
O castigo da ausência,
Vou ficar a esperar
E vais ver-me lutar
Para que esse mar não nos vença.
Não posso pensar que esta noite
Adormeço sozinho,
Vou ficar a escrever,
E talvez vá vencer
O teu longo caminho.

Quero que saibas
Que sem ti não há lua,
Nem as árvores crescem,
Ou as mãos amanhecem
Entre as sombras da rua.

Leva os meus braços,
Esconde-te em mim,
Que a dor do silêncio
Contigo eu venço
Num beijo assim.

Não posso deixar de sentir-te
Na memória das mãos,
Vou ficar a despir-te,
E talvez ouça rir-te
Nas paredes, no chão.
Não posso mentir que as lágrimas
São saudades do beijo,
Vou ficar mais despido
Que um corpo vencido,
Perdido em desejo


quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Esta é a história da menina que vivia fazendo bolas de sabão. Soprava levemente, pois que a delicadeza era o segredo deste talento, e da argola nascia uma bola que crescia e crescia e logo se recortava e voava ali ao perto. Bolas de sabão que eram como pedaços de magia. Ou borboletas encantadas que voavam em seu redor enquanto ela abria os braços, fechava os olhos com força e fazia girar o corpo louco até se sentir tonta de alegria. Acabava por cair de joelhos no chão e esfregava com as mãos a terra no rosto, porque tudo é sensação.
Esta é a história da menina que vivia fazendo bolas de sabão e, um dia, a verdadeira magia aconteceu. As pequenas bolas de sabão eram muito frágeis, isto a menina já tinha aprendido. Estalavam de susto se embatiam em qualquer superfície dura da realidade; rendiam-se ao vento agastado que lhes gritava que saíssem do caminho. Bolas de sabão eram magia e magia não tem lugar neste mundo, mas a menina acreditava que um dia uma dessas bolas de sabão teria a força necessária para chegar aos céus. E por isso perseverava e perseverava e às tantas já se esquecia da bola de sabão que haveria de voar bem longe, mas perseverava…
No dia em que descobriu a tristeza, saiu-lhe do peito um suspiro interminável, o último sopro da infância, e com ele nasceu uma bola de sabão tão grande, mas tão grande, que mais parecia um mundo. E a menina subiu no ar envolta nesse mundo de sabão que criara. Quando chegou ao céu era de noite. A noite é o escuro, as estrelas e o luar. Pensou em levar consigo a lua quando regressasse, mas sabia, já então, que nunca teria braços para abraçar uma lua tão grande, além de que, por muito distraídas que andassem as pessoas, decerto notariam o furto… Não, o lugar da lua era aquele, de tal forma que nunca pudesse ser olhada de frente, para olhar a lua é preciso alçar a vista, erguer a alma.
Pensou então em levar uma estrela, talvez presa entre os cachos do cabelo, talvez escondida na algibeira. Ninguém repararia e para ela seria tão importante. Escolheu a única estrela de cinco pontas que havia nas redondezas. Mas quando pegou com as mãozitas o seu astro, percebeu que não podia deixar esse recanto do céu ainda mais escuro e foi então que lhe ocorreu. Levaria a estrela e colocá-la-ia ao peito, deixando em seu lugar o coração que doía.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

VIII


A Lady playing the piano
Carl Vilhelm Holsoe


(Aquela senhora na paragem de autocarro. Perguntaste-me o que tinha ela da viscondessa. O cabelo, respondi, duvidosa. Mas não, o cabelo da viscondessa é mais branco e mais comprido, embora raramente lho visto solto, ela usava-o preso num entrançado bonito.
Perguntaste-me se a concebia numa paragem, à espera de um autocarro. Perguntaste-me se o pai da senhora era homem que fumasse cigarrilhas. E eu não soube que responder, que nunca tinha pensado nisso.
Como explicar-te que não sei, que a personagem não é minha e que sou narradora de uma história que desconheço e que vou tecendo com palavras rotas de sentido?)

Um dia não me apeteceu ler, nem sequer aqueles livros que às vezes folheava distraidamente e que se compunham de gravuras de cidades que eu visitaria um dia, porque tinha decidido que veria o mundo inteiro, eu, que tinha o futuro como o meu mais precioso haver. E a distância? A distância era tão pequena, pois se o sonho dava passadas tão largas que eu mal o conseguia acompanhar.
Mas não me apeteceu ler e fui pôr-me à janela, olhando o fora. Estava de costas para a sala e foi assim que a música me surpreendeu. Não me voltei até ao momento em que se suspendeu, tão repentinamente como tinha começado. Foi esta a única vez que ouvi a senhora tocar. O bonito piano de cauda não era, afinal, um mero adorno, era um sonho insuspeitado, que ela assim me revelava. Talvez gostasse de tocar mais vezes, mas as mãos tremiam-lhe e certamente lhe doía escutar as notas vacilantes de um sonho envelhecido.
Não foi alegria. Não foi tristeza. Foi como se a alma tivesse crescido mais um palmo e não me coubesse no corpo. E a alma crescia e crescia e crescia e, a dada altura, já os olhos choravam a alma que não cabia.
Dedos de pianista ou cirurgiã, disse-me um dia a velha senhora. Mas eu já sabia que a música entraria em mim, mas nunca de lá sairia pelos dedos esguios; só pelos olhos, quando vertesse lágrimas, como quem chora canções.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010


Deixa a mão correr,
Longe do pulso que a confrange.
Escreve sobre coisa nenhuma,
Somente duas linhas de palavras rasuradas
Que te não deixem as noites tão sós.

sábado, 4 de dezembro de 2010