sábado, 9 de outubro de 2010



A noite é o lugar dos chacais. Desde sempre o soube. Mais do que saber, pressenti, pressinto. Amor e morte, os saberes pressentidos mais vívidos do meu lugar de dentro. Amor e morte, caminhando de mãos enlaçadas pela vida humana, numa intimidade que arrepia.
Adormeci com a chuva escorrendo ruidosa pela janela. Queria que soubesses como a chuva me entra coração adentro num sossego franzido de inquietação. Queria que soubesses tanta coisa, mas tardas em mostrar-me o rosto. A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno. A chuva lá fora fustigando velhas telhas e beirais e recordando o frio que não há, porque o amor é um calor prazeroso e aconchegante.
Mas também a solidão pode ser perfeita em momentos. Há pouco, quando encostei a cabeça para dormir, sabia que podia abrir o caderno de capa gasta e escrever. Há na vida sentires perfeitos, há no mundo chuvas de beleza irrepreensível, capazes de calar a dúvida incerta do talento mais inepto. Com a monção, não deixarão de vir embaladas em água. Oh sim, eu podia ter escrito palavras, mas a preguiça tolheu-me a intenção. Eu podia ter escrito palavras muito belas, mas antes assim, pois que, escrevendo-as, talvez me visse a braços com a frustração. Antes o paradoxo de sonhar o sonho.
Adormeci, mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer. E acordei com o coração desgraçado de terror sem lágrimas e abri muito os olhos para não dormir outra vez. E aqui estou, meneando a cabeça de sono, e escrevendo as palavras, não sei se as tais de que fugi se outras, escrevendo o que amanhã me parecerá, porventura, estranho e longe.

6 comentários:

  1. Um estado de alma muito bem concebido. Uma forma bonita de apresentar medos, frustrações, contrariedades.
    Mas a vida não é só feita destas coisas menos agradáveis. Há outras belezas que, por vezes, nos passam ao lado e nós, distraídos, não damos por elas. A contrapor ao lugar do chacais, a noite temos, logo a seguir, o dia radioso e o Sol resplandescente. À chuva opõe-se a secura solarenga. À insónia o sono descansado e reparador. Para tudo é preciso um sentido. E este pode ser colorido, assim nós saibamos ver os acontecimentos na perspectiva sorridente.
    Gostei muito.
    Beijinhos
    Caldeira

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  2. "A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno."
    "Adormeci, mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer."
    As aves, pela sua condição, têm o condão de festejar a vida. E fazem-no de forma tão natural e transparente que nem se repara na profundidade dos seus actos. São assim, as aves, e estão "condenadas" a voar na claridade. Por isso não gostam do escuro. Não é da sua condição.

    Beijo :)

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  3. Gosto da noite...
    Gosta de andar à chuva...
    Nas ci no primeiro dia de Inverno e gosto desse frio se calhar porque "A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno."
    E assim, (se puder haver também um pouco de neve, tanto melhor :) também eu gosto de adormecer na sinfonia que lá fora nos embala os sonhos.
    Belo texto!

    Beijinhos

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  4. Não vou dizer muito para não estragar o que é perfeito. Destaco as expressões: "os saberes pressentidos mais vívidos do meu lugar de dentro. Amor e morte, caminhando de mãos enlaçadas pela vida humana, numa intimidade que arrepia;"chuva me entra coração adentro num sossego franzido de inquietação";"mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer";"E aqui estou, meneando a cabeça de sono, e escrevendo as palavras, não sei se as tais de que fugi se outras, escrevendo o que amanhã me parecerá, porventura, estranho e longe."

    Tanta beleza inquieta, Elisabete!!!

    PS. Depois comentarei os outros textos. Não está esquecida,minha querida, Elisabete!!!
    Um dia destes explico a minha ausência.

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  5. As palavras são o sono do hábito.
    Jorge Manuel Brasil Mesquita
    Lisboa, 13/10/2010

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  6. Oh minha querida Eli, peço te perdão por esta ausência!

    Mas agora que desfruto todos os dias não só das palavras mas também da companhia, não me sinto tão tentada a escrever! Mas prometo que vou contrariar este sentimento e deixar te mais vezes aqui o meu beijinho.

    Os textos que leio escritos pela tua mão deixam-me sempre com o coração a bater mais forte... Acho que por saber ser tão sincera a dedicação que mostras em cada um deles.

    A falta de decoro de que te acusam em postes anteriores é com certeza a acusação de uma alma pobre. Mas felizmente esse é apenas um barco encalhado do meio de tantos outros que navegam no sentido de te mostrar a força e a coragem para continuares.

    Um beijinho do tamanho do mundo

    Diana C*

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