A noite é o lugar dos chacais. Desde sempre o soube. Mais do que saber, pressenti, pressinto. Amor e morte, os saberes pressentidos mais vívidos do meu lugar de dentro. Amor e morte, caminhando de mãos enlaçadas pela vida humana, numa intimidade que arrepia.
Adormeci com a chuva escorrendo ruidosa pela janela. Queria que soubesses como a chuva me entra coração adentro num sossego franzido de inquietação. Queria que soubesses tanta coisa, mas tardas em mostrar-me o rosto. A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno. A chuva lá fora fustigando velhas telhas e beirais e recordando o frio que não há, porque o amor é um calor prazeroso e aconchegante.
Mas também a solidão pode ser perfeita em momentos. Há pouco, quando encostei a cabeça para dormir, sabia que podia abrir o caderno de capa gasta e escrever. Há na vida sentires perfeitos, há no mundo chuvas de beleza irrepreensível, capazes de calar a dúvida incerta do talento mais inepto. Com a monção, não deixarão de vir embaladas em água. Oh sim, eu podia ter escrito palavras, mas a preguiça tolheu-me a intenção. Eu podia ter escrito palavras muito belas, mas antes assim, pois que, escrevendo-as, talvez me visse a braços com a frustração. Antes o paradoxo de sonhar o sonho.
Adormeci, mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer. E acordei com o coração desgraçado de terror sem lágrimas e abri muito os olhos para não dormir outra vez. E aqui estou, meneando a cabeça de sono, e escrevendo as palavras, não sei se as tais de que fugi se outras, escrevendo o que amanhã me parecerá, porventura, estranho e longe.
Um estado de alma muito bem concebido. Uma forma bonita de apresentar medos, frustrações, contrariedades.
ResponderEliminarMas a vida não é só feita destas coisas menos agradáveis. Há outras belezas que, por vezes, nos passam ao lado e nós, distraídos, não damos por elas. A contrapor ao lugar do chacais, a noite temos, logo a seguir, o dia radioso e o Sol resplandescente. À chuva opõe-se a secura solarenga. À insónia o sono descansado e reparador. Para tudo é preciso um sentido. E este pode ser colorido, assim nós saibamos ver os acontecimentos na perspectiva sorridente.
Gostei muito.
Beijinhos
Caldeira
"A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno."
ResponderEliminar"Adormeci, mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer."
As aves, pela sua condição, têm o condão de festejar a vida. E fazem-no de forma tão natural e transparente que nem se repara na profundidade dos seus actos. São assim, as aves, e estão "condenadas" a voar na claridade. Por isso não gostam do escuro. Não é da sua condição.
Beijo :)
Gosto da noite...
ResponderEliminarGosta de andar à chuva...
Nas ci no primeiro dia de Inverno e gosto desse frio se calhar porque "A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno."
E assim, (se puder haver também um pouco de neve, tanto melhor :) também eu gosto de adormecer na sinfonia que lá fora nos embala os sonhos.
Belo texto!
Beijinhos
Não vou dizer muito para não estragar o que é perfeito. Destaco as expressões: "os saberes pressentidos mais vívidos do meu lugar de dentro. Amor e morte, caminhando de mãos enlaçadas pela vida humana, numa intimidade que arrepia;"chuva me entra coração adentro num sossego franzido de inquietação";"mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer";"E aqui estou, meneando a cabeça de sono, e escrevendo as palavras, não sei se as tais de que fugi se outras, escrevendo o que amanhã me parecerá, porventura, estranho e longe."
ResponderEliminarTanta beleza inquieta, Elisabete!!!
PS. Depois comentarei os outros textos. Não está esquecida,minha querida, Elisabete!!!
Um dia destes explico a minha ausência.
As palavras são o sono do hábito.
ResponderEliminarJorge Manuel Brasil Mesquita
Lisboa, 13/10/2010
Oh minha querida Eli, peço te perdão por esta ausência!
ResponderEliminarMas agora que desfruto todos os dias não só das palavras mas também da companhia, não me sinto tão tentada a escrever! Mas prometo que vou contrariar este sentimento e deixar te mais vezes aqui o meu beijinho.
Os textos que leio escritos pela tua mão deixam-me sempre com o coração a bater mais forte... Acho que por saber ser tão sincera a dedicação que mostras em cada um deles.
A falta de decoro de que te acusam em postes anteriores é com certeza a acusação de uma alma pobre. Mas felizmente esse é apenas um barco encalhado do meio de tantos outros que navegam no sentido de te mostrar a força e a coragem para continuares.
Um beijinho do tamanho do mundo
Diana C*