segunda-feira, 12 de julho de 2010


… Foi nessa altura que tropecei nesse teu choro baixinho. Estaquei e assim fiquei, por minutos fundos que nem horas. E fui um ladrão na noite, espiando das sombras essa tua alma desnudada. Choras baixinho, sabes? Com descrição. Com resguardo. Choras como quem desvia o olhar. Porque fazes das lágrimas o teu maior segredo?
Abri a porta desse teu quarto de bonecas e, com os olhos, pedi licença para entrar. O teu olhar feito mar resvalou sobre mim e o que vi foi um lampejo de contrariedade. Não vergonha, apenas contrariedade. Porque te surpreendi, não num momento de fraqueza, mas nessa suprema intimidade de seres.
Eu entrei e, uma vez mais, me senti intruso no teu mundo. O teu quarto parece perdido num tempo de fantasia e, nas paredes que te contêm, sinto o respirar do tanto que és.
Sentei-me com cuidado, consciente de que a rudeza podia calejar de mágoa o teu mundo de cristal. A tua voz falou. Pediste-me que, por essa noite, por uma noite, te guardasse o coração. Doeu-me a tua fragilidade e quis tanto, por uma noite que fosse, pegar em minhas mãos o chumbo que trazes em ti.
Ajoelhei-me junto da tua cama pequenina, afaguei-te o cabelo e limpei uma lágrima que te nascia no canto do olho. E admirei-me, sabes? Como pode uma lágrima, essa leve transparência, ser sinónimo de tanta dor?
Pediste-me que te lesse uma história. Eu peguei no livro que tinhas à cabeceira e li. Logo me arrependi. A história d’ O Monte dos Vendavais é sombria, linda, certamente, mas sombria e eu queria tocar-te de alegria. Devolvi o livro ao lugar que lhe destinaste. Tu, adivinhando-me os pensamentos e a intenção do gesto, sorriste com descrição e, como quem confidencia, falaste-me de Catherine e Heathcliff e concluíste dizendo que o amor mais nobre e puro pode nascer no coração mais rude e desgraçado.
Fiquei em silêncio, pegando a tua mão fria, até que acabaste por adormecer. E lembro-me de ter pensado, olhando o teu rosto adormecido, que a tua vida era como o céu nocturno: uma mescla de pequenos pontos brilhantes num manto de negritude.

7 comentários:

  1. ...e assim devagarinho vais construindo uma história que um dia será completa. Dá gosto ler-te.
    um bjinho.
    Isabel

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  2. Um esboço dos ínfimos equilíbrios da delicada construção do nosso interior.
    Sente-se, na abordagem, a preocupação de entender, de perceber, em simultâneo com a percepção, por parte da autora, da fina delicadeza dos caminhos que está a trilhar...

    É um tema difícil, E.A., mas saíste-te bem da ousadia.
    Parabéns!

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  3. É sempre com profunda emoção que leio os seus textos. Ontem li e não comentei. Hoje voltei para ler mais devagar e mais vezes.Como diz a Isabel,aos poucos constrói uma história, sempre como linha estruturadora a descoberta do mundo íntimo.O narrador e personagem fundem-se,ou melhor, o narrador projecta-se na personagem e a personagem no autor.Que belo caminho para um livro de carácter intimista.
    Gostei deste narrador "psicólogo"que percusta na criança os anseios do autor(a).
    Dá gosto vir aqui, Elisabete.EXCELENTE!!!!!

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  4. mt giro!

    cumprimentos à família ;)

    Letícia

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  5. Sem comentário ao texto mas apenas para dizer-lhe que continuo a passar por aqui.É um prazer lê-la.Por norma leio bastante mas comento pouco.
    Continue, porque os seus leitores estão atentos à beleza do que escreve.

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  6. Recomendaram-me este blog e ainda bem que vim.Escreve de forma sublime.

    Paula

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  7. Obrigada a todos os que comentam ou acompanham em silêncio. Para mim tem toda a importância. Um beijinho

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