segunda-feira, 26 de julho de 2010

Ele


Nessa tarde, a porta do pequeno apartamento onde vivias estava encostada. Que descuido!, lembro-me de ter pensado. Mas distracções ou desleixos desta natureza eram frequentes. Ainda hoje não sei do que tinhas medo. Capaz de, sozinha, percorreres, à noite, as ruas da cidade, mas chorando baixinho se a mão negra que só tu vias te fazia festas no rosto. Medos sem substância. Fantasmas. Memórias. Vivências. Projecções. Era esta a tua casa assombrada.
Bati e, como se ninguém respondesse, entrei. Uma tesoura de grandes pontas, negra dos muitos anos que teria, estava pousada sobre uma mesa e, espalhadas pelo chão, mechas desse cabelo de que tanto gostavas. Nenhum espelho.
Entraste na sala, vestindo as roupas velhas e roçadas com que gostavas de andar por casa. O teu cabelo, o cabelo que penteavas com tanto esmero, sempre direito, sempre correcto, era agora uma moldura desalinhada. Um corte tosco, descuidado. Uma massa revolta era o que agora te enquadrava o rosto.
Mas, mais do que tudo, impressionou-me esse teu sorriso de catraia, tão feliz, tão leve, tão genuíno.
Nesse momento, apaixonei-me por ti. Outra vez.

2 comentários:

  1. A casa íntima do outro, onde reinam os medos, as memórias, os fantasmas.Texto que me ajuda a compreender certas doenças de foro psiquiátrico. Interpretei bem o sentido do texto" minha aluna" de excelência?
    Bjinho.
    Isabel

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  2. Estou de acordo com o que diz a Isabel.Só não sei se essa casa íntima não é a da própria autora...
    Beijinho

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