quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O quarto


Durante as férias de Verão, decidiu mudar o quarto que, até aí, nunca tinha sido verdadeiramente seu. Era o seu quarto, mas nunca foi o seu refúgio. Decidiu, pois, mudá-lo. Sozinha, arrumou em caixas e caixotes todo o bricabraque da sua infância. Sozinha, pintou as paredes. Sozinha, envernizou os móveis que um dia, pequenita, escolhera para si (já então tinha estranhas ideias e qualquer mobília de quarto serviria, contanto que tivesse uma escrivaninha; fez-se a busca à tal escrivaninha encantada, e ela apareceu:
- Gostas desta?
- Gosto sim, pai.
E aquela ficou. E aquela ainda está.)
Pintou e envernizou com um empenho louco e com uma felicidade imensa dentro de si; com o empenho desmedido de quem, pintando um quarto, se pinta a si mesma, se pinta mais forte, mais autónoma, mais capaz; com a felicidade imensa de quem percebe que, por vezes, entre a vontade e o acto de a tornar real, tangível, o passo é mais pequenino do que se julga. Ousar. Atrever-se. Vencer-se. Compreender que a maior entrave não está no mundo lá fora, mas dentro de nós, nos medos, inseguranças e fragilidades que criaram raízes no que nos define, no que a define.
Hoje está sentada nesse quarto, dedilhando o teclado de um computador, escrevendo não sei o quê, escrevendo não sei para quem, escrevendo não sei porquê.
O quarto é pequenino. Nele não caberia aquele toucador que vira este domingo enquanto passeava por uma loja num centro comercial. Mas não importa, tem uma escrivaninha, uma cadeira de balanço e a recordação de um toucador (tão lindo…) que não caberia no seu quarto.
Hoje, o quarto está um pouco desarrumado, mas era mesmo essa a intenção. Não é, pois, uma verdadeira desordem ou, pelo menos, não desta vez. Se a desordem é construída, premeditada, trabalhada, então será talvez e tão-somente uma ordem diferente. Quando veio para casa, passar as férias de Natal, o quarto, na simetria, no rigor da disposição dos escassos objectos que hoje o preenchem, pareceu-lhe frio, pouco acolhedor; há vida num certo tipo de desordem, da mesma forma que, no escrúpulo de certo tipo de ordem, se adivinha a sua ausência.
Não há fotografias no quarto. O pai perguntou-lhe se gostaria de receber uma máquina este Natal. Talvez gostasse, mas não para fotografar as pessoas e os momentos da sua vida. Fotografaria apenas os recortes da paisagem lá fora e talvez um ou outro sentimento espelhado no rosto de um desconhecido. Quem sabe.
Em relação aos momentos da sua vida, percebeu há muito que o que se guarda, o que se recorda, são os sentimentos e esses não cabem numa película fotográfica. Um dia, em Itália, sentada numa praça, sentiu o que poucas vezes nos é dado sentir. Uma profunda gratidão, naquele momento em que o mundo foi belo e perfeito. Houve alguém que a fotografou nesse instante e, mais tarde, lhe ofereceu o registo. Essa fotografia nada diz, nada vale. Nos grandes momentos da nossa vida, as fotografias ficam aquém.
Já os rostos nas molduras assustam-na e tantas vezes fazem doer. As fotografias são mentirosas. Há nelas uma perversidade disfarçada, a perversidade do tempo…joguetes que somos nas mãos dos deuses. Nas fotografias da menina que foi, magoa-a o seu olhar de criança, a certeza de que nesse olhar havia sonhos. Tê-los-á esquecido? A maior tristeza do mundo é a traição a nós mesmos…
Mas o que dói, o que queima é a ironia triste daquele momento de vida suspenso, quando a vida já não existe. (O que dói, o que ME queima, o que ME estilhaça por dentro é o sorriso do MEU avô, o sorriso desdentado e travesso do MEU avô. O sorriso mais lindo do mundo.)
Não tem fotografias no quarto. Alguns objectos, poucos. E livros, sobretudo livros… Os livros que sobreviveram aos anos e a si mesma. Os livros e todas as palavras desencontradas que guarda dentro da escrivaninha: os seus rascunhos, as suas cartas, a letra de uma canção, um poema ou uma frase que leu ou ouviu algures e que copiou para um papel… pois que, podendo, tê-los-ia escrito na alma. Uma colecção de palavras.
Dezembro de 2009

2 comentários:

  1. Uma escrita límpida, que emociona. Salpicos de uma vida ainda breve e já tão madura. Revi a menina de quinze anos que me encantava com a sua escrita.
    Isabel

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  2. Como não sei escrever nem um terço do que esccreves, só digo 'Fantástico!'.

    Muitos parabéns pelo blog.

    Sónia

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