terça-feira, 5 de abril de 2011


Janet Treby

De vez em quando, estacada na escadaria, ela escuta a melodia. A acústica do prédio não o protege naquela que é, porventura, a sua maior intimidade e as notas angustiadas encontram um poiso certo numa caixinha que ela guarda dentro e onde, tanta vez, ressoa a angústia também.
O pianista sem rosto tem dedos machos. Ela não sabe, mas sabe. Dedos machos e longas pestanas nos olhos inquietos que lhe denunciam a fatalidade. Ela não sabe, mas sabe.
Um dia, ela escutou os acordes imperfeitos da sua música em gestação. Nem por isso lhe soou menos bela. A sua música. Porque acredita que à força de tanto gostar, pode fazer dela as coisas belas do mundo.
A sua música nasceria perfeita daí a uns dias e ela, num acaso de magia, escutá-la-ia também.
Ele toca para ela, porque é ela que o acompanha nesse momento de intimidade maior, em que se julga mais só. Sentada num degrau ela escuta, atrasando a entrada em casa, onde a melodia soa mais distante e nebulosa.
Dele não sabe o rosto, apenas os olhos que se lhe enformam na imaginação. No momento em que a música se suspender, suspeitosa, ela entrará em casa e o pianista sem rosto encontrará a escadaria vazia. A música é o desencontro deles, mas o requiem da música é o silêncio.

7 comentários:

  1. Há os que apenas intuímos, pela sensação de prenúncio a cada quase encontro. Ou ao lhes farejar os vestígios da densa alma quando já não estão.

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  2. No silêncio da noite vim ler os teus textos. Que agradável este espaço de palavras, poesia e música! Continua...
    Desejo que os estudos estejam a correr bem.
    Bjinhos.

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  3. de vez em quando também eu atravesso o inferno. quando a música toca, as labaredas perdem-se no ritmo das notas, num bailado lascivo que se esquecesse de queimar. sabes que o silêncio arde bem mais do que o fogo?
    beijinho!

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  4. no silêncio musical

    dos degraus da escada

    muito bonito, E!

    um beijo

    manuela

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  5. Ela não sabe, mas sabe.
    E a vida projecta-se através das imagens que fazem parte do espólio de mil e uma expectativas.
    Ela não sabe, mas sabe.
    E o aconchego dura enquanto perdura o desencontro. Porque nos anseios de quem quer abraçar o mundo todos os encontros são possíveis...
    Elisabete, eis uma Escritora!

    Beijo :)

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  6. Num acorde de silêncios o que toca são versos envolto nos olhares...

    Muito lindo!!

    Beijos

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  7. Os ecos das notas tocadas ao piano a ressoar no pensamento dela. Talvez seja essa a única forma honesta de cumplicidade, a que se faz no silêncio da poesia das horas.

    Nessas horas pergunto-me por que me falta tempo para vir aqui com mais frequência, beber na fonte das tuas palavras, sempre bem construídas...

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