domingo, 13 de março de 2011


Innocence, Janet Treby


Tu que vives embalando sonhos no resguardo de um berço que deixa a realidade lá longe. És forasteira no mundo, pois que dos teus olhos se vê um lugar inventado. Ousa. Atreve-te a sentir a chuva mais perto. Que sabes tu da água escorrendo fria pelos lugares do corpo?
E ela assim fez. Assim se fez.
Caminhou descalça na noite que cobiça de longe, a branca camisa adejando-lhe ao pés, e deu-se à chuva como nunca se deu a ninguém, fazendo da água um amante perfeito.
As linhas de chuva oblíquas que lhe atravessavam o corpo, penetrando-a, eram dedos tacteando-lhe a pele numa selvajaria de sentidos ao rubro. E o ruído agreste era uma voz impudica que lhe gritava uma entrega e a fazia corar de pudor.
Esqueceu o espelho de latão onde namora o rosto e atreveu-se a olhar-se debruçada sobre as águas de um rio assolado pela chuva. Julgou que a água em desassossego, que está e já não está, porque se abraça constantemente em violência, era a imagem da sua alma despida, nua de confortos e falsas seguranças. Julgou que a turbulência que via era dela, era ela. Talvez seja. Talvez sejas.
No instante em que se rasgou o vestido, vieram lágrimas que a chuva bebeu. Na promiscuidade de duas águas que se beijam, ninguém viu que chorava.
Quando regressou ao berço, cobriu a nudez com um xaile de ouro. Olhou-se ao espelho como sempre fazia e viu a pupila, que é o negro dos olhos, crescer, como sombra que alastrasse no seu corpo. Para que nasçam sombras, pedaços brancos terão de morrer. E se quiseres pintar o negro de uma claridade nova, será que podes? Ou o branco que nasce das trevas ficará sempre sujo e maculado?
É mentira. Molhei-me de palavras e estou ainda sentada à janela, do lado de dentro de uma transparência sólida feita de vidro. Talvez não saibas, mas muros sem cor são também barreiras onde moram prisões. São assim algumas das minhas transparências. E por isso adio a coragem.

10 comentários:

  1. Amei ler-te neste texto em que no início parece haver dois narradores, mas que no último período se verifica que afinal só existe um -ou melhor dois Eus do mesmo narrador .
    dentro de nós existem prisões, barreiras que muitas vezes nos impedem de experimentar a coragem...e afinal nós somos tantos num só,
    beijo, Elisabete.

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  2. Elisabete,
    Está a escrever, cada vez mais, com maior segurança, e isso é muito bom.
    Que dizer do texto? Maravilhoso!

    Beijo :)

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  3. elisabete,
    por onde andei ao longo deste tempo todo, numa blogosfera que nos conduz a canais tão óbvios quanto quase imperceptíveis?... e tu aqui tão próximo, sem que te visse... o que escreves recorta a fineza da voz como se os sons deslizassem sobre água, sobre seda, à espera do momento certo para desabrocharem em pérolas como "fazendo da água um amante perfeito" e "São assim algumas das minhas transparências. E por isso adio a coragem". e no corpo, mesmo que sem coragem, há ecos a anunciar os caminhos.
    bravo!
    um beijo!

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  4. regressei

    ao berço
    ao xaile
    e à coragem, adiada ou não

    obrigada, Elisabete!

    um abraço

    manuela

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  5. E.A.
    Que texto maravilhoso! Que sentimentos fortes transparecem das palavras escolhidas e colocadas no lugar e tempo certos!
    Muitos parabéns. Este texto faz bem à alma.
    Beijinhos
    Caldeira

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  6. É tão «agressiva» de beleza esta escrita intimista que se desdobra em cada segmento de texto, que é necessário recuar e recuar, ler e desdobrar os olhos e o pensamento à procura dos vários sentidos que caracterizam os grandes textos.
    E vê-se que é a própria narradora, qual Anteu, a procurar na terra da sua escrita os trilhos intrínsecos da descoberta do ser humano e da sua própria descoberta.

    Minha querida, Elisá, que bom sentir esse pulsar na respiração das palavras!

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  7. Que delícia voltar e reencontrar um texto desse pelo caminho.

    Palavras são só palavras, mas adquirem música quando escolhidas e casadas por afinidade.
    Você tem a batuta. E rege sua orquestra com delicadeza ,talento e sensibilidade.

    Beijos, Elisabete.

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  8. De te deitares com a chuva, acordaste prenhe de símbolos. Tuas palavras, filhas do encontro, tinham da água o D.N.A. de fluir. Minavam de teus dedos, cercavam-te em condição de ilha. Tu, a um só tempo, a que vertia e a que acumulava, na concavidade das mãos, goles de tempestade.

    Elisabete, que belíssimo texto, de imagens-tatuagens, que se colam ao leitor para nunca mais. Do dilatar as pupilas ao risco narcísico de curvar-nos sobre o próprio reflexo. Saiba que tocas, que marcas, que modificas as impressões dos que atravessam em mergulho apnéico tuas profundidades.

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  9. ...e que os testes lhe corram bem!

    um beijo

    manuela

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  10. (depois de escrever, pega num carvão e desenha, um rápido desenho, cheio de gestos) Parabéns!

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