terça-feira, 25 de janeiro de 2011

IX


"meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?"
Clarice Lispector

Embora senhora de idade provecta, era muito bela. Dizê-lo assim, à distância dos anos, no alto da minha juventude, parece talvez uma concessão, uma gentileza. Não sei se é.
Lembro-me de um dia, da estranheza de tudo o que vi e senti. Se eu quisesse escrever as minhas memórias de criança, elas seriam vislumbres desordeiros, avançando e recuando numa linha temporal que não consegui conservar. São retratos a sépia sem data, com um ou outro adorno involuntário, porque a infância é sempre um tempo de saudade, que todos gostamos de engalanar, acrescentando ao que é baço um ou outro reflexo de oiro.
Digo-vos isto porque ainda a criança entrará de visita. Mais tarde. Não hoje. Hoje cresci.
Como me é difícil contar. O novelo das palavras não se desfaz e as linhas enredam-se confusamente. Um atropelo de nós num bordado imperfeito. Mas retomando.
Nesse dia, a senhora recebeu-me com o rosto crispado do desassossego que escondia dentro. Porque o silêncio é o eco do grito aprisionado. Esse dia foi o único em que a vi assim fraca, assim vergada. E vi a dimensão de um desespero que ela aprendera a disciplinar, num silêncio correcto, que deixava o segredo lá longe.
Vestia um vestido de baile, que lhe assentava ridiculamente no corpo envelhecido. Mas não foi isto que pensei e o que vi, nas folgas do vestido que cobria o corpo emagrecido, foi dor. Agarrou-me a mão e conduziu-me até ao quarto onde nunca tinha entrado. Sentou-me diante do toucador e retirou de um guarda jóias um conjunto de pérolas, o mesmo que talvez tivesse usado com o vestido, numa noite em que desceu as escadas de um salão pelo braço galante de um príncipe. Colocou-me os brincos e depois segurei o cabelo para que apertasse o colar. Eu rodei o corpo no banquinho e voltei-me de frente para a senhora. E assim ficámos longo tempo.
Ela, olhando-me, olhava-se, ressuscitando a juventude morta. E eu, olhando-a, via também. Uma alma com requebros de menina, atolada num corpo de velha. Doeu-me a descoberta de que até o rosto que é meu não é meu, um empréstimo somente.

(um pedido de desculpa pela ausência... exames ainda)

7 comentários:

  1. estou a gostar das melhorias. a espaços fizeste-me recordar avgustina bessa-luís.

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  2. E.A.
    Em primeiro lugar votos de que os exames estejam a correr bem e de acordo com os seus desejos. Depois dizer que me encantou esta parcela de um conto que ainda tem muito para nos dizer.
    Permita-me que destaque algumas frases que mais me tocaram: "São retratos a sépia sem data, com um ou outro adorno involuntário, porque a infância é sempre um tempo de saudade, que todos gostamos de engalanar, acrescentando ao que é baço um ou outro reflexo de oiro".
    "Doeu-me a descoberta de que até o rosto que é meu não é meu, um empréstimo somente".
    Só quem tem uma sensibilidade apuradíssima consegue descrever com tanta leveza e beleza a decrepitude que a velhice nos traz a todos.
    Beijinhos
    Caldeira

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  3. Elisabete,
    A sua escrita, plena de talento, é sempre uma delícia de se ler.
    Mas tire lá o curso, que as palavras não se importam de esperar. Espero que os exames estejam a correr bem.

    Beijo :)

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  4. É sempre bom ler os seus textos, pois viajamos nas imagens que cria...

    Desejo que tudo corra bem, nessa fase de exames que atravessa!

    Beijinhos

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  5. Elisá

    Espero que esses exames corram como merece.
    O texto tocou-me especialmente porque me atingiu na idade.Perto, muito perto de mais um década de peso, confronto-me com uma jovem que me "ressuscita a juventude", mas não ma dá. O ato é mental e até espiritual, numa espécia de despedida que ando a experimentar..Nunca senti
    isto, mas sessenta é outra idade.
    Tropecei aqui" Uma alma com requebros de menina, atolada num corpo de velha". O espelho já não me mente...
    Como sempre, estes textos introspetivos são pérolas.
    Beijinho e muitas e muitas coisas boas, menina de estimação.

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  6. Olá, minha querida.

    Perdoe-me a ausência... rs

    Belíssimo post este, como de costume, não é?
    Adoro ler-te! :)

    Tem um singelo presente para vc no meu blogue, tá? Beijos coloridos! :)

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