terça-feira, 26 de outubro de 2010

Chamava-se Escritor, pois era um fazedor de palavras. Tinha em si o dom mais bonito do mundo e vivia escrevendo livros. Livros que muitas pessoas liam, tantas pessoas, livros exibidos em expositores em grandes livrarias, livros que a menina lia com sofreguidão no recato anónimo do seu quarto.
Quando leu os livros do Escritor, ela compreendeu. Cada palavra, cada contexto, cada sentimento, cada ênfase. Mas o pensamento não falou exactamente assim, e o que soou foi que tinha sido compreendida. Um revés de sentido, que a coloca a ela no centro do mundo.
Mas tantos o lêem. Talvez ela esteja enganada e o milagre da compreensão não seja tão raro assim.
Um dia, ela soube que o Escritor estaria na cidade. Sentiu curiosidade, não muita, mas o suficiente. Pois bem, faria por estar presente. Apanhou o autocarro para a tal cidade e caminhou por longo tempo até encontrar a livraria. Enquanto caminhava, procurava sinais. O que esperaria encontrar? Uma cidade engalanada para receber o Escritor? A cidade estava igual ao que sempre fora, só nos seus olhos havia um brilhozinho de expectativa comedida.
A menina não falou com o Escritor. Entrou na livraria e voltou atrás. Às vezes desilude-se com as coisas e, pelo sim pelo não, não valia a pena arriscar. Teve medo de descobrir que, no fim de contas, todos fingem, todos mentem. Até o artista, que vive a arte a intervalos.
O que escreve o Escritor é tremendo. Como um dedo esticado que toca por acaso um coração ferido. Dói, mas acorda o grito e traz a vida.
Ele é o Escritor. A menina de que vos falo uma leitora, que sonha em segredo que um dia lhe chamem o mesmo nome também. É só um sonho. É tudo este sonho.
Nasceram sob o signo do mesmo amor. A ele não lhe faltam palavras, enquanto ela parece ser dona de um destino calado e silente. Por um dom como aquele, ela venderia a alma e seria tão pouco.
Não sabe escrever amor, mas sabe senti-lo e tem em si o orgulho indecente de acreditar que ninguém ama mais do que ela. As palavras.




... Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector

sábado, 9 de outubro de 2010



A noite é o lugar dos chacais. Desde sempre o soube. Mais do que saber, pressenti, pressinto. Amor e morte, os saberes pressentidos mais vívidos do meu lugar de dentro. Amor e morte, caminhando de mãos enlaçadas pela vida humana, numa intimidade que arrepia.
Adormeci com a chuva escorrendo ruidosa pela janela. Queria que soubesses como a chuva me entra coração adentro num sossego franzido de inquietação. Queria que soubesses tanta coisa, mas tardas em mostrar-me o rosto. A chuva é a solidão molhando o mundo, mas sei, pressinto, que é também o abraço mais terno numa noite de Inverno. A chuva lá fora fustigando velhas telhas e beirais e recordando o frio que não há, porque o amor é um calor prazeroso e aconchegante.
Mas também a solidão pode ser perfeita em momentos. Há pouco, quando encostei a cabeça para dormir, sabia que podia abrir o caderno de capa gasta e escrever. Há na vida sentires perfeitos, há no mundo chuvas de beleza irrepreensível, capazes de calar a dúvida incerta do talento mais inepto. Com a monção, não deixarão de vir embaladas em água. Oh sim, eu podia ter escrito palavras, mas a preguiça tolheu-me a intenção. Eu podia ter escrito palavras muito belas, mas antes assim, pois que, escrevendo-as, talvez me visse a braços com a frustração. Antes o paradoxo de sonhar o sonho.
Adormeci, mas o breu entrou-me no sono abandonado e eu sonhei com a palavra escura que às vezes tenho medo de dizer. E acordei com o coração desgraçado de terror sem lágrimas e abri muito os olhos para não dormir outra vez. E aqui estou, meneando a cabeça de sono, e escrevendo as palavras, não sei se as tais de que fugi se outras, escrevendo o que amanhã me parecerá, porventura, estranho e longe.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Quase amor


Klimt


Então é assim que o amor acaba? Num breve olhar assombrado.
Eles fitam-se através de metros de gente, carros, ruídos da via pública. Fitam-se num instante que dura uma eternidade, pois o tempo faz-se de mentiras. Instantes suspensos na eternidade dos afectos, mas também a brevidade das eternidades prometidas.
Um dia, foram amantes. Nessa vida que passou, um dia era o futuro, hoje é a tristeza de uma obra imperfeita. E aqui, a prova evidente de que tudo pode ser o que é e o seu contrário. Um dia será. Um dia foi.
Amantes: a palavra que soa como segredos partilhados na calada da noite. A palavra que soa baixinho, como murmúrio de amor. Foram amantes. Nos dedos que se enlaçaram. Nos olhares que se fitaram. Nos lábios que se tocaram, rubros de desejo. Foram amantes que hoje se olham como estranhos numa história de quase amor.
“Terás esquecido as sílabas do meu nome?”. Ela sente um resquício de dor e surpreende-se, pois o que vem sentindo há dias é indiferença. Talvez uma lágrima cansada. Ainda. Se vier, calá-la-á.
“Tinhas medo que os teus dedos gelassem se tocassem o meu coração frio? Cobarde. Nunca saberás sequer que te traíste.” Ele viu lágrimas nos olhos tristes da menina branca. Lágrimas que a boca dele não bebeu e ela soube como podem ser frias as lágrimas que molham o rosto. E o amor morreu.
“Não te amei, escolhi amar-te.” Ela não o amou, escolheu amá-lo. Pediu-lhe que lhe ensinasse o amor e aprendeu o quase amor, feito de perda e desencanto.
Para eles, o amanhã será jamais. Para eles, o nunca será a derradeira eternidade.



E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos arrastámos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes, construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para olhar as estrelas do céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite, abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha suspensas no tecto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na sua teia, contemplámo-nos longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde. Foi assim que vi desfilar os anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente. Heathcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.
Como explicar-te como tudo isto se te tornou alheio, como tudo te pareceria agora estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a Ítaca e Penélope alguma desfará de noite a teia que te teceste. E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter. Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem principio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu para sempre."

Não te deixarei morrer, David Crocket