sábado, 20 de agosto de 2011

É alto, caminha um palmo acima e ela não lhe vê os olhos. Por isso deseja que lhe trave o passo e lhe pouse os lábios na fronte ou no cabelo. Só para lhe saber do amor, que nunca é eterno e se conhece instante a instante. Mas o amor atrasa-se constantemente.
Adiante, ela pega-lhe na mão. A sua mão direita e a mão esquerda dele. Só quando estão de frente as mãos se olham em espelho. Fá-lo parecer natural, espontâneo, como se nem tivesse reparado na mão que se escapou do orgulho. Mas queima e os pensamentos, nesses instantes, são feitos de pele entrelaçada.
A dada altura, ela olha-o fixamente e abre-lhe um sorriso que é uma pergunta, uma intimação. Ele responde com um sorriso também. Mas.
Não espera palavras. Ocasionalmente, talvez. São gestos que quer. Gestos de amor para um vício de amor que não cura. E o egoísmo de o querer vulnerável num amor que o curvasse nos desejos e nas vontades.

(Que ames sempre. Eu amo, sobretudo às vezes. Foi um poeta quem disse, mas eu sou poeta também. No desajuste. E na coroa que me faz altivo o porte. E um rei não mendiga, nem sequer amor.)

sábado, 13 de agosto de 2011

À meia-noite, há uma menina que aprende a andar de bicicleta. E o som da campainha do guiador, riso fresco de criança, insinua-se através da janela, aberta, porque é uma noite de Verão e o calor.
No tempo em que os anos me cabiam nas mãos, também eu. O cesto da bicicleta branca que haveria de ter quando crescida estava repleto de flores que pedalavam rua abaixo numa liberdade feita de vento no rosto, loucura sem tino. Quando crescida, pensou ser devaneio de menina. Sonho aguardado, sonho relegado. Sonho que não cabe, afinal, em tempo algum.

Quem salvaria o mundo esta noite? Foste tu quem te escolheste, pois eu pensei que quisesse falar de amor.

Asas

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

(Antes de vir, por dias me rondei. Era medo. Do desencontro, talvez.)

Choveu, escutam-se as rodas nervosas no asfalto molhado e, nos entremeios, um silêncio gordo que é uma espécie de zumbido que se desenha em espirais.
Pergunto-me quem são e se acaso já olharam a noite de frente. Eu não. Espreito-a e temo e cobiço. E é a ela que vendo a minha intimidade.
E pressinto-a. A tristeza em mim não é sentida, é pressentida, entendes isso?
A noite. Tal como a música, entra-se em mim e entranha-se e quando o dia romper no alvoroço de uma luz muito branca, talvez persista ainda o desajuste.
O sono é o remedeio. Mas às vezes, até aí a lucidez se vence. E então abro os olhos e há um corpo deitado a meu lado. E então os olhos ardentes fixam as órbitas vazias de um olhar assombrado. É o medo.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Clandestino

E eu no meu quarto murmurando palavras, labaredas a esmorecer dentro da luz do dia. Labaredas negras luzindo no fim da noite, quase dia. O tremor da noite a morrer. A fundura da noite a clarear. O dia a devorar golfadas de sombras e pensamentos ruins. E eles a trespassar o meu corpo e o escuro, como uma espada de aço, fria, fria. E eu penso e sonho e imagino coisas que nem a mim conto. E sinto as minhas mãos desgovernadas a tactearem a luz e o meu corpo, como se acariciassem as crinas de um cavalo, a fímbria espumosa de uma onda, a finíssima pele da água parada no fundo de um poço. O desejo, o lobo, o medo irrompendo na pele onde as minhas mãos se detêm sem pressas: tocando, mexendo, imaginando coisas.
O Perfumista, Joaquim Mestre